Ninguém melhor do que um cientista para entender e normalizar o acaso. É na obra da aleatoriedade que David Schlesinger deposita uma parte dos acontecimentos que lançaram a Mendelics no cenário mundial da medicina genômica.
E o imponderável sorri para os mais aptos: graças a uma troca de e-mails em que fora erroneamente copiado, o médico conheceu, em 2012, aquele que seria o futuro investidor e presidente do conselho da então jovem startup, o empresário Laércio Cosentino. “Ele não era uma pessoa que estava no meu radar, e nem a gente estava no dele”, conta David, a quem eventos não planejados parecem não impressionar.
Cientistas ― e empreendedores ― sabem que circunstâncias afortunadas ajudam, mas que só uma bagagem sólida realiza. E, aos 43 anos, o CEO e cofundador da Mendelics já se considera, em suas palavras, um dinossauro. A história explica: em duas décadas, o tripé que o acompanha desde a faculdade - medicina, genômica e tecnologia - atropelou o tempo, revolucionando a vida das pessoas.
Era por volta de 2001. David queria fazer pesquisa, por isso trancou a Faculdade de Medicina da USP e foi para os Estados Unidos, para se dedicar à iniciação científica. Naquela época, a primeira fase do Projeto Genoma Humano, iniciado em 1989 e até hoje considerado um dos maiores feitos da ciência, era concluída. Envolveu mais de 2,8 mil pesquisadores do mundo inteiro e custou mais de 3 bilhões de dólares. Foi quando se sequenciou o primeiro genoma humano.
Mais tarde, com o avanço dos estudos, descobriu-se que nosso DNA é quase idêntico entre todas as pessoas. Em outros termos, geneticamente, somos entre 0,1% e 0,2% feitos de variedade. Pode parecer pouco, mas para alguém que vive nas profundezas do estudo da genômica, esse número não engana - desta minúscula parcela de diversidade, surgem milhares de doenças genéticas raras. Daí em diante o número de pesquisas e artigos científicos publicados na área se multiplicou, enquanto outra revolução emergia para viabilizar essa expansão: a computação.
Da academia aos negócios
“Descobri que eu gostava de computação quase tanto quanto eu gostava de medicina”, diz David em entrevista ao podcast Vale do Suplício, lembrando que a Mendelics se tornou um dos primeiros clientes do Google Cloud na América Latina, por volta de 2012, tomando conhecimento do novo produto quando ele nem havia sido anunciado no mercado brasileiro. “A gente deve subir cerca de 20 a 30 terabytes para a nuvem toda semana. Isso é importante, mas não tanto assim, porque existe a nuvem. Sem ela seria inviável fazer genômica”.
Tecnicamente, a Mendelics faz o sequenciamento completo do exoma, área que codifica as proteínas dos genes e representa 2% do genoma humano. Nessa região, localizam-se aproximadamente 75% das alterações genéticas que causam doenças. A possibilidade de levar o exame de Sequenciamento de Nova Geração (na sigla em inglês, NGS, de Next-Generation Sequencing) para um grande número de pessoas, impactando positivamente sua saúde e longevidade, era uma ideia nova, de efeitos ainda pouco mapeados.
“O João Paulo Kitajima, meu sócio, é um bioinformata de mão cheia, eu sou de mentirinha. Realizamos casos piloto para provar que sabíamos fazer o diagnóstico de doenças raras com esse novo tipo de sequenciamento”, conta David. André Valim, amigo da faculdade, e Fernando Kok, ambos médicos e futuros cofundadores da Mendelics, chancelaram a ideia. “O André me ligou durante um mês falando 'pelo amor de Deus, David, você precisa entrar nisso comigo'”.
A insistência venceu a certeza numa batalha entre academia e mercado. “Fui levado para o empreendedorismo esperneando”, diz ele, sem demonstrar um pingo de exagero. Tinha toda uma carreira acadêmica pela frente, após tanto investir nela: depois da temporada nos Estados Unidos, voltou ao Brasil, concluiu o curso de medicina na USP, especializou-se em neurologia e fez o doutorado em genética de populações, tentando descobrir doenças novas e raras.
Mas não havia escapatória. Quando a Mendelics, enfim, nasceu, inicialmente idealizada como uma empresa de biotecnologia, ou bioinformática, uma nova revolução genômica se espalhava pelo mundo. E se o Projeto Genoma Humano se estendeu por anos e custou 3 bilhões de dólares, as novas técnicas de sequenciamento chegavam, naquele momento, a 50 mil ou 100 mil dólares, levando algumas semanas e tornando-se acessível para a pesquisa científica.
Uma brecha de controle
O fato é que, atualmente, o sequenciamento de um genoma custa cerca de 500 dólares e demora um dia ou dois para ficar pronto. E a Mendelics, criada para ser uma empresa de diagnóstico médico, foi parar, também, no campo de escolha do paciente, com lançamento do meuDNA, teste que revela dados sobre ancestralidade e propensão a doenças - em outras palavras, traduz o código que a natureza gravou no indivíduo, comparando-o a um imenso banco de dados genético da população.
“Eu era médico, hoje sou só portador de CRM. Mas quando eu tinha uma visão estritamente médica e trabalhava com neurogenética, recebia muitos pacientes que diziam ter encontrado uma variante genética que aumentava em tantos por cento a propensão a certa doença”, lembra David. Os únicos testes a que as pessoas tinham acesso, até então, eram focados na identificação de dados a partir de alterações bioquímicas. “Só que há muitas doenças genéticas igualmente graves, precoces, tratáveis (ou preveníveis) que não provocam alteração bioquímica”, explica o já convertido empreendedor.
A Mendelics foi pioneira - no mundo - na criação e disseminação do teste da bochechinha, tipo de um teste do pezinho, porém genético. O produto é utilizado, inclusive, em alguns centros de referência do SUS para identificar, precocemente, bebês que tenham necessidade de tratamento.
Não é só no início da vida, porém, que a genômica pode intervir. “Há mutações que aumentam radicalmente o risco de colesterol elevado, que provoca o infarto precoce, e de se ter câncer de mama, por exemplo. Já existe indicação da Academia Americana de Genética Médica e Genômica para que o paciente seja alertado quando esses genes são encontrados, mesmo que ele não esteja procurando por eles”, explica David.
Antecipar e contornar problemas que ameaçam a nossa qualidade de vida pode até parecer ficção científica. Só que David não gosta de obras de ficção, ele diz. Como todo bom cientista, procura vestígios de ordem e controle no vasto terreno do acaso. Para que o conhecimento salve. Para que não seja tarde demais.
Este texto é baseado no depoimento de David Schlesinger ao Vale do Suplício, podcast criado pelas jornalistas Adriele Marchesini e Silvia Paladino, e que conta histórias de empreendedores que falam pouco, mas fazem muito. Ouça no Spotify.
(*) Silvia Noara Paladino é jornalista e escritora especializada em narrativas de não-ficção, com pós-graduação em Escrita Criativa pela Universidade de Berkeley, na Califórnia. É autora de três biografias de empresários brasileiros. Colaborou com veículos setoriais e da grande mídia, como Folha de S. Paulo, e foi editora de CRN Brasil, uma das maiores revistas de tecnologia do mundo. É sócia-fundadora das agências essense e Lightkeeper, e também editora do projeto Destino Paralelo.