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'Lugar de mulher é na obra': o projeto que ensina mulheres de baixa renda a reformar as próprias casas

14 jan 2017 - 15h27
(atualizado em 15/1/2017 às 15h12)
Paula Martins da Silva, moradora da ocupação Dandara, em Belo Horizonte, integra turma atual de projeto que ensina mulheres a planejar e executar reformas em casa
Paula Martins da Silva, moradora da ocupação Dandara, em Belo Horizonte, integra turma atual de projeto que ensina mulheres a planejar e executar reformas em casa
Foto: Bruno Figueiredo / BBC News Brasil

Numa rua de terra batida a 16 km do centro de Belo Horizonte, Ana Paula Souza, de 36 anos, troca sozinha o piso do quarto da casa em que vive com a filha de três anos, uma sobrinha e seu pai.

Perto dali, Adriana Silva, de 40 anos, que também não tem emprego fixo, ergue uma parede por conta própria no local que abriga seus três filhos.

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Se na hora da construção é o homem que costuma tomar as decisões, nesta área da capital mineira - um terreno do tamanho de 40 campos de futebol ocupado desde 2009 - as mulheres estão começando a tomar as rédeas.

A iniciativa é da arquiteta Carina Guedes, de 32 anos, que há três anos desenvolve um projeto de assistência técnica a mulheres de baixíssima renda na cidade.

Vista geral da ocupação Dandara, em Belo Horizonte, e detalhe do planejamento de ocupação do solo da área, feito por equipes da UFMG e PUC-MG com lotes de tamanhos iguais, áreas coletivas e de preservação
Foto: Bruno Figueiredo / BBC News Brasil

O projeto, batizado Arquitetura na Periferia, nasceu da pesquisa de mestrado de Carina e já soma bons resultados e apoio internacional.

A primeira edição ocorreu entre setembro de 2013 e junho de 2014, com três famílias. Por dez meses, a arquiteta fez visitas semanais ao terreno, batizado ocupação Dandara, para se encontrar com as futuras "mestres de obras".

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Logo nas primeiras reuniões, as moradoras receberam um "kit levantamento" para que pudessem desenhar e medir as próprias casas: pasta, trena, prancheta, lápis, caneta, borracha, apontador, papel branco, manteiga e vegetal, bloco de notas, etiquetas, um roteiro de trabalho e uma máquina fotográfica.

Flávia Fonseca dos Santos, participante da segunda edição do projeto, com planta da casa que ela mesma desenhou
Foto: Bruno Figueiredo / BBC News Brasil

Nos encontros seguintes, avaliaram problemas e planejaram soluções. Adriana queria colocar acabamentos e mudar a configuração de sua casa de 60m2. Ana Paula sonhava em abrir novos cômodos, ter piso e estrutura hidráulica.

Mão na massa

Na hora de conciliar os orçamentos com a verba disponível (R$ 9 mil emprestados por Carina e R$ 3 mil que as participantes economizaram juntas), as alunas da primeira turma sugeriram que aprendessem a fazer as reformas para economizar com mão de obra.

Foram dois dias de trabalho prático em técnicas de construção com a pedreira Cenir: quanto cimento e areia devem ser colocados no reboco, como peneirar a areia, qual é a forma certa de usar o prumo. Quem jogava reboco na parede sem deixar a massa cair no chão ganhava aplausos das colegas.

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Adriana, que faz trabalhos eventuais como faxineira, conseguiu fechar uma parede em sua casa e abrir outra. Assim, não precisou mais atravessar o quarto do filho adolescente para chegar ao seu. Fez reboco e piso na casa toda, pintou as paredes.

Adriana Silva fez o reboco e piso de casa e resolveu problema de ter que passar por dentro do quatro do filho adolescente antes de chegar ao seu
Foto: Bruno Figueiredo / BBC News Brasil

"Levantar parede foi o que mais gostei. Veio uma professora, aquela mulher é demais. Eu vivo sozinha, e vi que podia fazer o que queria sem precisar de outra pessoa, de um homem para ajudar", afirma.

Na casa de Ana Paula, demolição e alvenaria. Levantaram a parede de um quarto, reduziram o banheiro e construíram a parede da cozinha, tirando o fogão da sala.

"Nunca tinha imaginado colocar a mão na massa e falar 'eu que fiz'. O fato de ser uma mulher (pedreira ensinando) aumentou nossa autoestima, pensávamos 'nossa, mulher pode fazer o que quiser, basta querer'", lembra a moradora.

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A idealizadora do projeto diz ter optado por trabalhar exclusivamente com mulheres por apostar, entre outros pontos, que isso facilitaria o relacionamento e a criação de laços de confiança.

A arquiteta Carina Guedes com a filha de dez meses; opção por formar grupos exclusivos de mulheres, diz, busca 'tornar experiência menos intimidadora e mais informal'
Foto: Bruno Figueiredo / BBC News Brasil

Também pesquisara experiências de financiamento que mostravam que mulheres tendem a se comprometer mais do que os homens com o bem-estar da família.

"Tinha receio de que as mulheres se inibissem com homens, pois os homens tendem a achar que sabem mais. Quando participei de cursos semelhantes em outros ambientes, os homens em geral tomavam as falas", afirma a arquiteta.

A ideia de trabalhar em esquema de microcrédito aliviou o bolso das mulheres, que desembolsavam cerca de R$ 150 por mês para pagar o empréstimo feito por Carina. Também fortaleceu os laços do grupo, afirmam as envolvidas, já que todo o dinheiro ficava na conta de uma delas.

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"Nunca tinha imaginado colocar a mão na massa e falar 'eu que fiz'", diz a moradora Ana Paula Souza
Foto: Bruno Figueiredo / BBC News Brasil

Lições e próxima etapa

Para viabilizar a segunda turma do projeto, Carina passou a integrar a associação Arquitetos Sem Fronteiras, que trabalha com transformação social pela arquitetura, e conseguiu apoio da ONG internacional Brazil Foundation.

Quatro outras mulheres já estão trabalhando nas reformas na Ocupação Dandara, com R$ 5 mil para microfinanciamento, e outro grupo será formado em outra ocupação da cidade.

"Eu desenhei minha casa, estou me admirando por isso. Quando levei o desenho na loja de cerâmica, o rapaz até me perguntou se tinha feito curso", diz Flávia dos Santos, 36 anos, da turma atual do projeto.

O objetivo da idealizadora é transformar o Arquitetura na Periferia em negócio social e incorporar conhecimentos de outras áreas para melhorar a qualidade de vida das famílias usando recursos disponíveis na região.

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Participantes de projeto usaram pequenas figuras para visualizar disposição de móveis em casa
Foto: Bruno Figueiredo / BBC News Brasil

"O que faço é uma microintervenção, mas os moradores precisam de muitos outros tipos de apoio, como psicólogos e médicos. As pessoas têm uma visão de que estou sendo uma espécie de Madre Teresa de Calcutá, como se fosse boazinha de estar fazendo isso. Mas na verdade estamos tentando ampliar a atuação do arquiteto para uma demanda que é real e urgente."

O déficit habitacional no Brasil era de 6 milhões de moradias em 2014, segundo estudo da Fundação João Pinheiro.

Minas Gerais tem o segundo déficit do país (529.270 moradias), atrás apenas de São Paulo, e famílias com renda mensal de até três salários mínimos, como as do projeto em BH, somam 84% das pessoas sem casa.

Apesar dos avanços, a situação das moradoras beneficiadas pela iniciativa na ocupação ainda é de insegurança jurídica. Uma construtora reivindica a posse da área, e o caso se arrasta na Justiça desde 2009.

"Não posso dizer que é impossível ter despejo, mas hoje a Dandara está muito mais consolidada do que outras ocupações. No começo as pessoas tinham esse medo, mas estamos mais confiantes", afirma Ana Paula.

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O impacto do projeto também parece ir mais fundo nas ruas de terra da ocupação. Em uma palestra sobre a iniciativa na Escola de Arquitetura da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Luciana da Cruz, da primeira turma, disse que deixou de alisar os cabelos e hoje se sente mais bonita. "Se mudo o espaço em que estou, vou me mudando também. Também fiz pequenas reformas em mim", disse.

Entrada da área da ocupação e casa em obras na região; maioria das casas de alvenaria foi erguida em processo de mutirão
Foto: Bruno Figueiredo / BBC News Brasil
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