À frente das investigações sobre as supostas irregularidades nas contas do governo Dilma Rousseff de 2014, o procurador do Ministério Público Júlio Marcelo de Oliveira, que atua junto ao Tribunal de Contas da União (TCU), acredita que a "profunda crise econômica" que o país atravessa é consequência da "farra fiscal".
A expectativa é que o TCU decidirá em breve, no início de outubro, se recomenda que o Congresso Nacional rejeite ou aprove as contas do governo do ano passado. Se o tribunal considerar que houve irregularidades na gestão fiscal e decidir recomendar sua rejeição – e o Congresso concordar com essa avaliação –, Oliveira acredita que isso poderia ser um argumento jurídico para fundamentar o pedido de abertura do impeachment da presidente.
No entanto, ele ressalta, que está é uma decisão "com forte carga política". "Sem dúvida que a má gestão das contas públicas, a ponto de serem rejeitadas, seria um fundamento jurídico. Mas a conveniência política é uma questão privativa do Congresso", afirmou.
"Minha expectativa é que os ministros percebam a gravidade das infrações, das irregularidades cometidas, e opinem pela rejeição das contas. A gente está em uma crise econômica profunda que é em grande parte fruto daqueles erros de gestão", argumentou.
Foi Oliveira que solicitou a abertura de uma inspeção no ano passado para investigar se o Tesouro Nacional estava atrasando os repasses de recursos para bancos públicos, com objetivo de melhorar artificialmente as contas públicas, o que ficou conhecido como "pedalada fiscal".
A investigação resultou em um parecer do ministro José Múcio, que foi aprovado por unanimidade no tribunal em abril, considerando que essas manobras feriram a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
Segundo reportagem do jornal publicada na semana passada, a tendência é que, novamente por unanimidade, os nove ministros decidam recomendar a rejeição das contas do ano passado.
Para Oliveira, o governo usou as "pedaladas" e outras "fraudes" para elevar os gastos de 2014, com objetivo de vencer a eleição. Confira abaixo os principais trechos da entrevista:
BBC Brasil - Qual sua expectativa com relação ao julgamento?
Júlio Marcelo de Oliveira - Minha expectativa é que os ministros percebam a gravidade das infrações, das irregularidades cometidas, e opinem pela rejeição das contas. Isso é o que eu espero.
Quanto mais o tempo passa e o Brasil se aprofunda nessa atual crise econômica, mais a sociedade e os próprios ministros percebem o quanto esse momento de desajuste fiscal brasileiro é consequência da farra fiscal que aconteceu em 2014. A gente está em uma crise econômica profunda que é em grande parte fruto daqueles erros de gestão.
BBC Brasil - Por que o senhor acha que a crise atual está ligada a questão fiscal?
Oliveira - Porque esse é o centro da nossa crise. Nós gastamos mais do que arrecadamos. O governo fez dívida com os bancos federais que agora tem que pagar. A arrecadação está em queda, como já estava em 2014, e o governo quer manter o mesmo nível de gastos que existia antes. Isso é impossível. Então, você tem um orçamento enviado ao Congresso com meta de déficit porque o governo não percebeu ainda que o único caminho para resgatar a credibilidade da economia brasileira é o corte de despesas, o equilíbrio entre receita e despesa.
E antes de convocar a sociedade para o pagamento de novos impostos é preciso que haja uma racionalização de gastos. Os cortes anunciados são muito tímidos. Há milhares de cargos comissionados, por exemplo, e o governo indica que só vai cortar marginalmente. Você não vê o governo sendo austero.
BBC Brasil - Caso o TCU recomende a rejeição das contas e o Congresso decida nesse sentido, poderia ser um argumento jurídico para a abertura de um processo de impeachment?
Oliveira - Poderia ser um argumento jurídico, mas aí é uma decisão com uma forte carga política. Sem dúvida que a má gestão das contas públicas, a ponto de serem rejeitadas, seria um fundamento jurídico. Mas a conveniência política é uma questão privativa do Congresso mesmo.
BBC Brasil - Alguns juristas que questionam o impeachment dizem que ele só pode ser aplicado no caso de crimes cometidos durante o mandato.
Oliveira - Eu não vou poder entrar nessa questão porque é um debate que vai ocorrer lá no Congresso. Há os que defendem que o fato de um mandato ser a sequência do outro, e que o fato dessas irregularidades de 2014 terem sido cometidas para obter o mandato seguinte, faria uma conexão entre os fatos e o atual mandato.
Outros defendem o que você disse, que não há conexão, que só aquilo que foi feito a partir de 2015 (pode justificar um processo de impeachment). É um debate que vai acontecer lá no Congresso e eventualmente no Supremo Tribunal Federal (caso haja recurso contra uma eventual decisão). Eu não tenho como emitir uma opinião técnica sobre isso.
BBC Brasil - Voltando ao julgamento do TCU, o governo argumenta que as práticas que estão sendo questionadas agora já foram aplicadas em outros anos, sem ter levado à reprovação de contas. Na visão do governo, uma mudança de avaliação significaria um julgamento político. Como o senhor vê essa crítica?
Oliveira - Esse argumento é absolutamente improcedente. O que aconteceu a partir do fim de 2013, e que marcou todo exercício de 2014, é algo totalmente inédito. Os gráficos do comportamento do pagamento de benefícios – de abono salarial, seguro-desemprego, Bolsa Família – demonstram isso. E todos os gráficos que mostram o relacionamento do governo com a Caixa Econômica têm um comportamento normal, desde 2002 até o meio de 2013. A partir do segundo semestre de 2013, o governo simplesmente para de mandar dinheiro para a Caixa e começa a usar a Caixa como cheque especial.
BBC Brasil - O que é inédito é o volume, certo?
Oliveira - O volume, o uso e a intenção clara de se financiar, de usar a Caixa como meio de financiar outras políticas do governo.
BBC Brasil - Mas as pedaladas já tinham sido usadas antes em volumes menores, esporadicamente, não?
Oliveira - Não, não mesmo. Você tem uma carga de suprimentos (dinheiro) para pagar benefícios, recursos que o Tesouro Nacional manda para a Caixa. Por exemplo, esse mês vamos pagar R$ 500 milhões de seguro-desemprego, que é uma estimativa (de quanto será necessário) segundo a série histórica (de pagamentos desse benefício). Chega o dia de pagar os benefícios. Se naquele dia aparecerem pessoas para sacar R$ 505 milhões, a Caixa não vai fechar o guichê às 15h40 e dizer que não tem dinheiro. Ela paga, no dia seguinte ela comunica ao Tesouro, o Tesouro repõe o valor. É uma coisa imediata. Não é uma coisa que o governo possa ficar usando como empréstimo.
O que aconteceu, a partir de meados de 2013 e ainda em 2014 inteiro, é que o governo não mandava os R$ 500 milhões. A Caixa pagava tudo e o governo ficava estão usando os R$ 500 milhões que tinha que mandar pra lá em outros programas que ele queria turbinar, sem ter dinheiro para isso, sem ter arrecadação suficiente.
BBC Brasil - No caso das pedaladas, por exemplo, o governo argumenta que TCU nunca fez qualquer ressalva. Não seria mais correto primeiro fazer uma ressalva, permitir que o governo se adeque e, no caso de uma continuidade da prática, rejeitar as próximas contas?
Oliveira - A lei (de Responsabilidade Fiscal) já existe desde 2000. O que foi feito desrespeita o centro da lei. Ela abomina que um banco possa financiar seu agente controlador. Então, descumpriu a lei, tem que ter a sanção. Se uma pessoa cometeu homicídio, nós vamos então recomendar que não faça novos homicídios porque da próxima vez aí sim vai ser punido?
Não foi uma coisa superficial, irrelevante, que possa ser chamado de ressalva. Uma ressalva é feita no caso de um decreto ser desrespeitado. Por exemplo, o decreto determina que o prazo para pagar era de 20 dias e você pagou em 25 dias. Mas pagou, não aumentou a dívida pública, não teve impacto significativo.
Isso é (motivo para) uma ressalva, não você deixar R$ 40 bilhões pendurados nos bancos públicos e nem contabilizar isso no Banco Central como dívida pública. Ainda teve isso, todo um concerto de órgãos para fazer algo absolutamente ilegal.
BBC Brasil - O ministro Gilmar Mendes disse recentemente que a análise das contas eleitorais pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) era um faz de contas. Isso também poderia se aplicar ao TCU, no sentido de que o tribunal sempre vinha aprovando as contas? Isso estaria mudando agora?
Oliveira - Não, aquilo que foi identificado (como problema nas contas públicas) nos anos anteriores não teve a gravidade do que foi identificado em 2014. Então, nos anos anteriores, o tribunal fez ressalvas porque eram (motivos para) ressalvas. O que aconteceu em 2014 não aconteceu antes, merece uma solução diferente.
BBC Brasil - E quando o senhor se refere aos problemas nas contas de 2014, o ponto central são as pedaladas, ou também outras irregularidades?
Oliveira - Não, tem as pedaladas e tem a fraude nos decretos de programação financeira e contingenciamento (decretos bimestrais que revisam as projeções de receita e despesa para o ano). Desde o começo de 2014, esses decretos foram fraudados, porque consideraram dados irreais. Esses decretos, por lei, têm que observar os dados oficiais coletados pelo governo.
E tem também um conjunto de decretos de abertura de créditos orçamentários adicionais feitos no fim do ano que só poderiam ser feitas por lei e foram feitos por decreto. Então, precisaria da aprovação do Congresso Nacional, e a presidente ignorou esse comando constitucional. Esse conjunto de irregularidades e de outras menores compõe o cenário de pouco apreço pelo respeito às normas da gestão fiscal.
BBC Brasil - Quando o senhor fala que eram irreais quer dizer que o governo não considerou que o fluxo de receitas estava vindo abaixo do esperado inicialmente?
Oliveira - Sim. Aquele decreto é feito a partir de uma coleta de informações junto às fontes de arrecadação (Receita Federal, principalmente) e junto aos ministérios que estão executando as despesas.
Por exemplo, o que ficou provado por nós no processo é que o Ministério do Trabalho avisou oficialmente ao Ministério da Fazenda que haveria uma frustração de receita de R$ 5 bilhões no FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), que é um dinheiro usado para custear o seguro-desemprego. E avisou também que, além disso, as projeções de pagamento dos benefícios indicavam a necessidade de suplementação da dotação (aumento da previsão inicial do Orçamento) em R$ 9 bilhões. Nove mais cinco dá 14. O governo não pode ignorar esse dado. Ele teria que ter contingenciado de alguma despesa não obrigatória esses R$ 14 bilhões para poder assegurar o pagamento do seguro-desemprego, que é uma despesa obrigatória e, portanto, não pode ser contingenciada.
O governo tinha os dados, mas ignorou. Fez um decreto de programação financeira como se a receita estivesse subindo e como se não fosse ter aumento da despesa de seguro-desemprego. Depois, pagou o benefício com dinheiro da Caixa e usou o recurso do seguro-desemprego para pagar a despesa não obrigatória que ele não quis contingenciar. Isso é uma fraude à Lei Orçamentária e à Lei de Responsabilidade Fiscal.
BBC Brasil - Nesse caso, então, o senhor acredita que o governo misturou os dois problemas, o do decreto e das pedaladas?
Oliveira - É, o decreto é a parte orçamentária, você prepara a pedalada. A pedalada financeira, que foi feita no banco, é a concretização, a segunda etapa.
BBC Brasil - E quanto ao decreto de abertura de créditos adicionais, o senhor poderia explicar melhor qual seria o problema?
Oliveira - Chega no fim do ano, algumas despesas do orçamento extrapolam aquilo que está previsto na Lei Orçamentária, como no caso do seguro-desemprego.
Então, hipoteticamente: chegou no fim do ano, eu ia gastar R$ 30 bilhões, mas vou ter que gastar R$ 35 bilhões. Eu tenho, então, que criar um crédito adicional no orçamento de R$ 5 bilhões para aquela despesa. Só que como eu não estou tendo sobra de arrecadação, vou ter que contrair dívida pública. Nesse caso, eu tenho que mandar um projeto de lei para o Congresso, que vai decidir se quer ou não quer fazer aquela despesa. O que o governo fez? Ele baixou um decreto abrindo mais R$ 5 bilhões.
Uma das funções centrais do Congresso é discutir Orçamento e aprovar a despesa pública. Se você fizer isso por decreto, é como se nós estivéssemos numa monarquia, que o imperador decide como vai fazer, do jeito que quiser.
BBC Brasil - O governo diz que não percebeu a crise antes, mas o senhor tem dito que vê uma motivação eleitoral no déficit do ano passado.
Oliveira - Sem dúvida. Tanto que a partir da eleição, no decreto (de programação financeira e contingenciamento) de final de outubro, o governo mudou completamente o discurso em relação ao que ele vinha sustentando até o decreto de agosto.
No decreto de agosto, ele dizia que iria cumprir um superávit de R$ 80 bilhões, no decreto de outubro ele já reconhece que vai haver um déficit de R$ 20 bilhões (as contas do governo – resultado que reúne as contas do Tesouro Nacional, INSS e Banco Central – acabaram fechando o ano de 2014 com um déficit primário de R$ 17,2 bilhões).
Então, uma piora de R$ 100 bilhões em dois meses, o que mostra que até agosto ele estava ignorando a realidade. Ele vivia na fantasia, passou a eleição, caiu na realidade. Quer dizer, em parte, porque até agora não caiu totalmente na realidade, não.