A ideia parece incrível: empresas que querem diminuir o efeito de suas emissões de gás carbônico (CO2), mesmo que não haja uma obrigação legal para isso, compram de outros projetos ou instituições créditos de carbono. Em tese, essas empresas compensam suas emissões, incentivam projetos de sustentabilidade e todo mundo fica feliz. Mas quem garante que esse processo ocorreu de forma adequada e confiável?
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O Brasil ainda não regulamentou o seu mercado voluntário de carbono, que, por isso, está enfrentando uma série de desconfianças.
"Há muitas suspeitas sobre os créditos de REDD+ [Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação florestal], em parte em função de uma divergência metodológica histórica e em parte relacionado à grilagem pública", explica Luciana Vianna Pereira, presidente da Comissão de ESG, Finanças Verdes e Sustentabilidade do Instituto de Direito Ambiental (IDAM).
A divergência metodológica citada por Luciana refere-se à forma como a Verra, maior certificadora global de créditos de carbono, garante que um empreendimento cumpre os requisitos para ofertar aquele crédito. Segundo a advogada, a instituição aceitava dois métodos distintos para certificação, porém, uma reportagem do The Guardian, publicada em janeiro de 2023, identificou créditos de carbono "fantasma" e concluiu que cerca de 90% das compensações eram, na verdade, inúteis.
"Em função disso, a Verra já se manifestou, já alterou a metodologia dela justamente para tentar unificar e dar um pouco mais de estrutura e credibilidade", complementa Luciana. Mas, no Brasil, o buraco é um pouco mais embaixo.
Em junho deste ano, uma operação da Polícia Federal desmantelou um esquema suspeito de vender R$ 180 milhões em créditos de carbono de áreas da União invadidas ilegalmente na Amazônia. Um dos alvos da Operação Greenwashing foi o autointitulado "maior produtor de crédito de carbono do mundo", o empresário Ricardo Stoppe Junior.
Seus projetos de crédito de carbono eram certificados pela Verra e comercializados pela Carbonext, a maior desenvolvedora de projetos REDD+ do Brasil. Ambas as instituições suspenderam seus vínculos com os projetos Unitor, Fortaleza Ituxi e Evergreen, que ocupavam uma área de quase duas vezes o tamanho de São Paulo.
Ao Terra, Janaina Dallan, fundadora e CEO da Carbonext, disse que a empresa não desenvolvia os projetos, apenas prestava assistência técnica sobre o que deveria ser feito e comercializava os créditos. Para dar início ao trabalho com os projetos, a Carbonext afirma que realizou diligências fundiárias, com acesso a documentos obtidos por órgãos oficiais.
Antes mesmo da operação, a empresa diz que desconfiou de irregularidades ao, em agosto de 2022, detectar uma sobreposição de área privada e pública. Janaína contou que exigiu do proprietário a apresentação de novos documentos que comprovassem que a área lhe pertencia. O prazo dado foi de um mês.
"Isso não foi cumprido e a Carbonext entrou na Justiça exigindo as provas, caso contrário o contrato seria rescindido. Um ano depois, o proprietário apresentou os documentos e a Justiça ordenou que o projeto fosse continuado. Entretanto, o projeto não gerou mais créditos, por dois anos, até que a Polícia Federal deflagrou a operação, que permitiu à Carbonext rescindir os contratos, com base na cláusula de compliance", informou a CEO.
Sem parâmetros
Em 2015, foi apresentado na Câmara dos Deputados o PL 2148/2015, que busca estabelecer o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE). A proposta já passou pela apreciação dos deputados e agora aguarda ser votado no Senado Federal, mas ainda não há uma previsão de quando isso deve ocorrer.
O projeto prevê que tanto o mercado regulado - referente a empresas que, seguindo a legislação, precisam compensar suas emissões - e o mercado voluntário de crédito de carbono sejam vinculados ao SBCE. Tal sistema demoraria ainda seis anos para terminar de ser desenvolvido, em um processo de seis fases.
Por enquanto, existe uma espécie de limbo com relação ao assunto. Procurado, o Ministério da Fazenda confirmou que atualmente não há nenhuma regulamentação específica voltada para o mercado voluntário de carbono e que o PL 182/2024 no Senado aguarda designação de relatoria.
Com isso, apesar das promessas sustentáveis, as plataformas que surgem precisam provar por si mesmas que são confiáveis. É o que acontece com a B4, que se denomina "a primeira bolsa de ação climática" brasileira.
"O foco não é 100% crédito de carbono, mas quando uma empresa ou alguém quer vender um crédito de carbono, ele aplica para a listagem na B4. A B4 internamente faz uma triagem para ver se tudo que essa pessoa está aplicando para a listagem realmente existe, está coerente e é legal. Depois a gente manda para auditoria de segunda parte, que pode ser uma certificadora ou pode ser uma auditoria mesmo de conformidade", explica Odair Rodrigues, CEO da plataforma.
Estando tudo nos conformes, o projeto pode então ser listado na B4, de forma similar ao que ocorre numa bolsa de valores tradicional. Os créditos de carbono serão fracionados e postos à venda. Com tais parâmetros, que Rodrigues considera "robustos", em pouco mais de um ano de atuação, a B4 aprovou apenas um projeto para listagem.
"A gente teve aproximadamente mais de 180 empresas [aplicando]. Esse ano não foi diferente. Também teve muitos projetos que aplicaram para vender crédito carbono. Então, ele está numa esteira muito longa de aprovação. Como essa régua é muito alta, é muito difícil aprovar crédito carbono na B4", afirma.
A expectativa do CEO é que, a partir de agosto, seja aprovado um projeto por mês.
A bolsa é uma boa ideia
A ideia de uma bolsa para crédito de carbono, segundo a advogada Luciana Vianna, é uma das melhores para um bom funcionamento desse mercado. Ela acredita que uma plataforma do tipo traria maior transparência às negociações e uniformizaria os preços dos créditos. Além disso, Luciana ressalta que, em se tratando de uma bolsa regulada, há a necessidade de fiscalização por parte da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
"Uma bolsa na atividade regulada vai ser regulamentada pela CVM, vai ter que seguir determinados critérios. Então, isso tende a dar maior transparência para essa comercialização, e também tende a dar maior liquidez, já que os ativos seriam comercializados com mais facilidade", considera a advogada.
Até o momento, isso não é o que acontece com a B4. Apesar de se apresentar como uma bolsa, por não vender ativos ou fundos financeiros, a empresa não precisa estar vinculada à CVM. A informação foi confirmada pela instituição.
Em nota, a CVM comentou o processo de regulamentação do mercado de carbono que está em tramitação no Senado, e afirma que se coloca à disposição para contribuir. A comissão afirmou também que enxerga com "bons olhos" o fato de políticas públicas desenvolvidas e incentivadas pela CVM estarem ganhando destaque também no ambiente legislativo.
A B4 não é a única plataforma do tipo a querer explorar esse mercado. A B3, bolsa de valores brasileira, anunciou em dezembro do ano passado uma parceria com o grupo de tecnologia ACX para desenvolver uma plataforma de venda de crédito de carbono. Em breve comunicado enviado ao Terra, a B3 informou apenas que a expectativa é de que o projeto comece a operar ao longo do segundo semestre.
Com tanta água ainda para rolar, quem faz parte desse mercado espera mesmo que as mudanças cheguem com um pouco mais de rapidez.
"O Brasil tem plenas condições para ser, por muitos anos, o grande protagonista do mercado de carbono mundial, já que 15% do potencial do planeta para retenção de carbono por meios naturais está aqui, com chances de atender a quase metade da demanda global por créditos de carbono", considera Janaia Dallan, fundadora da Carbonext.