Quando lancei meu livro “Nômade Digital” na metade de 2019, não imaginava que um ano depois uma pandemia global popularizaria o trabalho remoto e, por consequência, o interesse pelo tema nomadismo digital.
Praticamente toda semana sai uma matéria com dicas para quem quer se tornar um nômade digital, países que oferecem vistos especiais ou executivos que decidiram viver viajando.
Isso é ótimo. Mostra que mais e mais pessoas estão aderindo a este estilo de vida e trabalho que prioriza flexibilidade de horários e liberdade geográfica. Mas (vocês estavam só esperando pelo “mas”, né?), tem um outro lado não tão legal: os estereótipos que romantizam o nomadismo digital.
Largar tudo: clickbait x realidade
Perdi a conta de quantas matérias sobre pessoas que “largaram tudo para viajar o mundo” já li por aí. Os personagens geralmente são parecidos.
O rapaz que largou tudo para morar em algum lugar remoto — no Sudeste Asiático, de preferência.
A jovem que largou tudo para viajar sozinha com uma mochila nas costas durante um período sabático — e que certamente vai escrever um livro sobre isso.
E, claro, sempre há o relato do casal que largou tudo para uma viagem de volta ao mundo — fazer isso numa Kombi é bônus.
Embora os personagens dos exemplos acima existam no mundo real — ainda que em escala reduzida — e suas histórias sejam inspiradoras, na minha opinião, esse tipo de matéria é um baita desserviço. Baita mesmo. Vou até escrever em negrito: baita desserviço.
E não me entenda mal: o problema não está nos personagens. Eles estão vivendo suas verdades. Aplaudo isso. O problema está na maneira como essas matérias são conduzidas por jornalistas e produtores de conteúdo parte ingênuos; parte buscadores de cliques.
Ao romantizar essa suposta vida perfeita dos nômades digitais, esses clickbaits desanimam muitos interessados pelo tema – que terminam a leitura pensando que o nomadismo digital é coisa de quem nasceu em berço de ouro. A real é que eu duvido muito que os personagens citados acima tenham simplesmente largado tudo.
É claro que aqui falo apenas por mim, mas eu definitivamente não larguei tudo para viajar o mundo – tampouco nasci em berço de ouro.
Quando decidi me tornar um nômade digital, lá em 2016, fiz um planejamento detalhado e jornada dupla como CLT e freelancer durante 1 ano para juntar dinheiro caso algo desse errado (não deu) até me demitir e “largar tudo” no início de 2017.
Largar tudo sem planejamento é se atirar no mercado sem paraquedas. E cair de cabeça. Em cima de algo pontiagudo — e enferrujado, com grandes chances de você pegar tétano. Acho que fui claro nessa parte, né? Não faça isso. Não importa o quê diabos seu guru favorito diga.
Por isso, se você quer largar seu emprego, seja para se tornar um nômade digital ou não, peça as contas do jeito certo. De novo: largar tudo, de uma hora para outra, só para quem nasceu em berço de ouro.
Viajar o mundo: clickbait x realidade
Sim, eu vivo viajando. Desde 2017 passei por quase 30 países e mais de 50 cidades ao redor do globo. Esse “viver viajando”, porém, não significa que minha vida é só passear.
Eu trabalho pra cacete. Esse trabalho, no entanto, não é feito literalmente à beira mar como as fotos que ilustram grande parte das matérias sobre nômades digitais. Sim, já tive o privilégio de trabalhar com vistas incríveis, mas na maioria das vezes estou trancado em algum Airbnb com ar condicionado.
Aliás, imaginem o horror que seria trabalhar literalmente à beira mar. A areia, o sol na tela, a dor nas costas, o calor, o suor misturado com protetor solar… Passo.
Então quer dizer que o nomadismo digital não é tão legal assim?
Quando busquei o nomadismo digital como estilo de vida e trabalho, minha principal motivação foi a sensação de liberdade.
Eu queria ter flexibilidade em meus horários e, principalmente, a oportunidade de viajar o mundo sem precisar esperar o período de férias na firma — aliás, ter essa disponibilidade de viajar em qualquer época do ano me possibilita aproveitar promoções incríveis de passagens aéreas.
Como tenho flexibilidade com a minha agenda e geralmente trabalho com prazos, posso me organizar para curtir uma praia durante o dia e trabalhar a noite, por exemplo.
Ou seja, diferente do turista tradicional com um roteiro fechado de férias, eu dou minha turistada de acordo com a minha agenda e humor – costumo ficar entre 2 e 3 meses em cada lugar, então dá para fazer as coisas com calma e ainda trabalhar bastante.
Se é legal? Pra cacete. Mas tome cuidado com os clickbaits.
Agora, se vocês me dão licença, vou curtir uma praia – sem meu MacBook – que o de hoje tá pago.
(*) Matheus de Souza é nômade digital e morou em 30 países antes de fixar residência em Paris.