O presidente brasileiro Jair Bolsonaro chega nesta sexta-feira (29/10) a Roma para a reunião do G20 (grupo composto pelas 19 principais economias mais a União Europeia) com três "telhados de vidro" em sua tentativa de recuperar a relevância do país nos principais debates do encontro: políticas ambientais contra mudanças climáticas, estratégias para evitar futuras pandemias e recuperação econômica.
O evento com líderes dos países do G20 ocorrerá no sábado e domingo (30 e 31/10), após meses de debates e negociações com representantes das 20 principais economias do mundo em busca de consenso para medidas ligadas aos assuntos globais mais importantes de cada ano. Cabe aos líderes, ao fim, alinhar as posições comuns.
No debate sobre mudanças climáticas, Bolsonaro tentará mostrar de um lado que o país tem atuado para reduzir o desmatamento ilegal e as emissões de gases do efeito estufa e de outro que defende regras claras para o mercado de crédito de carbono e para o repasse de bilhões de dólares prometido pelos países ricos para ações ambientais em nações em desenvolvimento.
Bolsonaro é um dos únicos líderes do G20 que não devem comparecer à Cúpula do Clima em Glasgow (COP26). Sem dar detalhes, ele disse à TV A Crítica que sua ausência é uma "estratégia nossa" e que o país já assumiu compromissos ambientais que estão sendo cumpridos. Dados divulgados pelo Observatório do Clima nesta semana apontaram o Brasil teve um aumento de 9,5% nas emissões de gases poluentes em 2020, na contramão do resto do mundo.
Outros dois representantes de grandes emissores de gases do efeito estufa, o presidente russo, Vladimir Putin, e o líder chinês, Xi Jinping, também devem faltar à COP 26 e à reunião do G20.
Na questão pandêmica, o presidente brasileiro tem números positivos para mostrar a outros líderes do G20, com avanço significativo da vacinação e queda no número de casos e mortes por covid-19. Mas quase todas as menções ao presidente na imprensa italiana nos dias que antecedem o evento tratam das acusações da CPI da Covid contra o presidente que teriam agravado a tragédia, como medidas e declarações contra vacinas e máscaras. Ele, aliás, é o único líder do G20 que declarou não ter se vacinado contra a doença.
Por fim, o Brasil é hoje um dos países do G20 com horizonte econômico mais conturbado, agravado pelo cenário global de inflação, escassez de produtos e problemas energéticos.
Para Dawisson Belém Lopes, professor de política internacional e comparada na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o principal desafio de Bolsonaro na reunião do G20 é "a consistência duvidosa da economia brasileira", com perspectivas de crescimento declinantes em 2021 e de recessão em 2022, taxa de desemprego alta, inflação projetada alta e risco de apagão. "Essa dificuldade estrutural da economia brasileira é o maior desafio para que o Brasil possa se inserir de maneira positiva e propositiva em foros multilaterais de alto nível como o G20."
Segundo ele, o país deixou de ser cobiçado por investidores internacionais e enfrenta fuga de dólares enquanto não resolve problemas estruturais graves, como desindustrialização e participação "periférica, dependente e vulnerável" nas cadeias de produção e suprimento globais. "A desaceleração da demanda chinesa, por exemplo, traz impactos muito sérios para um Brasil tão dependente de um superávit comercial para fechar as contas nacionais."
Outro ponto central do debate econômico do G20, segundo a Casa Branca, será o avanço da proposta de forçar multinacionais a pagarem mais impostos, algo que, a depender do formato acertado, pode acabar favorecendo mais os países ricos do que aqueles em desenvolvimento, como o Brasil. A cobrança do novo tributo, prevista para começar em 2023, pode gerar uma arrecadação anual de US$ 150 bilhões (R$ 830 bilhões) para países ao redor do mundo.
Entenda abaixo esses três desafios para Bolsonaro na reunião do G20 em Roma.
Ações contra mudanças climáticas
Em entrevista a jornalistas em Brasília sobre os preparativos e as expectativas do Brasil para a reunião do G20, o secretário de assuntos internacionais do Ministério da Economia, Erivaldo Gomes, afirmou que o país defenderá em Roma que "salvar o planeta significa gerar oportunidades verdes, limpas e inclusivas que resultem em prosperidade sustentável para todos".
A questão ambiental deve ser a principal pedra no sapato da delegação brasileira no evento, com forte pressão internacional contra o desmatamento na Amazônia, as queimadas e as emissões de gases do efeito estufa no Brasil, que atingiram os maiores níveis em anos.
Mas a agenda ambiental em si pode acabar esvaziada pela proximidade da reunião do G20 com a realização da COP26 na Escócia, em que haverá debates mais concretos sobre novos compromissos para garantir a meta do Acordo de Paris de manter o aumento da temperatura média da Terra em 1,5°C.
Em abril, na Cúpula do Clima nos Estados Unidos, Bolsonaro assumiu o compromisso de zerar até 2030 o desmatamento ilegal e de atingir até 2050 a neutralidade de carbono (ou seja, reduzir as emissões de gases de efeito estufa tanto quanto possível e compensar as emissões restantes por meio do plantio de florestas, por exemplo).
Há três pontos importantes na posição brasileira sobre o clima: 1. garantir um naco significativo dos US$ 100 bilhões anuais que os países ricos preveem para financiar o impacto climático em nações pobres; 2. evitar que nações desenvolvidas criem punições a quem não seguir regras estabelecidas por elas (como metas de emissão para setores específicos da economia, entre eles a agropecuária); 3. regular finalmente o mercado de crédito de carbono, que permitiria a países que não atingem as metas comprem o "crédito" de outras nações que estão em dia com seus compromissos.
"Nós entendemos que um mercado é mais adequado porque gera a penalidade para o poluidor, mas ele vai fazer com que esse recurso flua do poluidor para aquele que está investindo em tecnologias limpas e conservação", disse Gomes, do Ministério da Economia.
Para o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, a taxação do carbono elaborada pela Comissão Europeia "seria uma forma de proteger as indústrias europeias de concorrentes estrangeiros que não cumprem os mesmos padrões de redução das emissões de gases de efeito estufa", afetando as cadeias do aço e do cimento do Brasil, por exemplo.
O principal obstáculo para evitar o que o governo Bolsonaro classifica de punições injustas é conter a maior fonte de emissão de gases do efeito estufa no país: o desmatamento.
Até pouco tempo atrás, o Brasil estava longe de figurar entre os maiores emissores do mundo porque os cálculos levavam em conta apenas a queima de combustível fóssil, sem incluir a poluição provocada pela destruição de florestas. Mas uma nova pesquisa sobre acumulado histórico de emissões de gás carbônico incluindo o desmatamento apontou o Brasil em quarto lugar no ranking de emissões desde 1850.
Segundo Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, organização que calcula anualmente as emissões no Brasil, nos últimos 30 anos, cerca de 80% das emissões do país foram decorrentes de desmatamento e uso do solo para pecuária. E durante o governo Bolsonaro, o desmatamento da Amazônia subiu em média 60% a mais do que na década passada.
Para Astrini, o principal desafio de Bolsonaro no G20 é falta de credibilidade no cenário internacional. "Em qualquer um desses locais, seja COP26, seja G20, o governo Bolsonaro vai ser cobrado por resultados primeiro. Isso porque ninguém mais acredita no governo Bolsonaro. É um governo que não tem mais credibilidade nem a menor moral na comunidade internacional pelo que faz e pelo que fala. O governo Bolsonaro falha nas principais pautas globais: na economia, na pandemia e no clima."
Recuperação econômica, escassez de produtos e taxação de grandes empresas
A pandemia de covid-19 causou o maior abalo na economia global desde a Segunda Guerra Mundial (1939-45), e o Brasil foi um dos países mais atingidos do G20.
Segundo dados comparativos da OCDE (conhecida como clube dos países ricos), o Brasil está entre aqueles com maior inflação, desemprego e tempo necessário para conseguir retornar ao patamar econômico anterior à pandemia. O país deve crescer em torno de 5%, após cair 4,1% em 2020, mas o ritmo de crescimento não deve continuar.
Alterações do governo Bolsonaro no teto de gastos para bancar um auxílio de R$ 400 podem agravar ainda mais a situação do país, de acordo com previsões feitas por instituições financeiras. O Itaú, por exemplo, apontou que a mudança fiscal pode afetar o câmbio, a inflação, o juros e levar o PIB brasileiro a cair 0,5% em 2022. Mas a retração econômica não é consenso: o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Boletim Focus (levantamento feito pelo Banco Central com mais de cem instituições financeiras) preveem um crescimento de 1,5% em 2022.
Caso o Brasil venha a ter uma queda no PIB, o país iria na contramão do G20 como um todo em 2022, quando a OCDE prevê um crescimento de 4,8%.
O futuro da recuperação econômica tem obstáculos distintos dentro do próprio G20. Enquanto potências como Reino Unido, China e Estados Unidos discutem saídas para a inflação e a escassez global de produtos, causada por problemas logísticos desencadeados por altos e baixos da demanda global durante a pandemia, países em desenvolvimento do G20 como Brasil, Índia e África do Sul enfrentam o agravamento da fome e crises internas.
Outro ponto econômico a ser debatido no G20 é a tributação de grandes empresas, como as gigantes de tecnologia Amazon, Google e Facebook, com objetivo de inibir a elisão e a evasão fiscal, que são manobras legais e ilegais, respectivamente, para pagar menos tributos.
O presidente americano, Joe Biden, pretende avançar com a proposta de taxação na cúpula de líderes em Roma, mas o formato da cobrança ainda não está fechado. O Brasil apoia o acordo fechado com mais de 100 países com uma alíquota mínima de 15% a ser aplicada a partir de 2023 a multinacionais com faturamento anual acima de 20 bilhões de euros (R$ 128 bilhões) e margem de lucro superior a 10%.
"Muitas grandes empresas faziam planejamento tributário agressivo de forma a fugir da tributação nos países e isso resultava em distorções a competitividade que não era saudável. Era desleal em relação às empresas tradicionais que pagam seus tributos em cada país. Esse acordo ajuda a equalizar as condições de competição, gera segurança jurídica e significa recursos que vão ser compartilhados com países em desenvolvimento", disse Gomes, do Ministério da Economia.
Em outubro, o ministro Paulo Guedes (Economia) elogiou o avanço da proposta de taxação feita pelo G20, que "entregará um sistema tributário eficaz e mais equitativo". Ele não chegou a estimar quanto o Brasil pode arrecadar com a taxação.
Mas um grupo de economistas renomados — entre eles o americano Joseph Stiglitz, os franceses Thomas Piketty e Gabriel Zucman, a indiana Jayati Ghosh e o colombiano José Antonio Ocampo — aponta que o Brasil e outros países em desenvolvimento poderiam ganhar mais com a proposta. Para eles, a alíquota mínima global deveria ser de 25%, e não 15%.
Além disso, eles criticam o critério de distribuição das receitas do tributo global, que deverá ser de 70 a 80% para os países sede dessas companhias e 20 a 30% para os países onde ocorrem as vendas. Por exemplo, a maior parcela da tributação sobre a Amazon iria para os Estados Unidos, seu país sede, e a parcela menor para os demais países usuários do serviço, entre eles, o Brasil.
Vacinas e futuras pandemias
O eixo da reunião do G20 que trata de vacinas e estratégias contra futuras pandemias aparece como a principal saia justa do presidente brasileiro, apesar dos números positivos que o país tem a mostrar atualmente.
Segundo dados do Ministério da Saúde, cerca de 53% da população já foi completamente vacinada contra a doença, e 72% já recebeu pelo menos a primeira dose. Em relação ao G20, esses números colocam o Brasil em 13º lugar entre os 20 membros do grupo. Além disso, o total de mortes registradas diariamente por covid-19 é o menor desde novembro de 2020. Numa comparação por milhão de habitantes, o Brasil tem atualmente o 7º maior índice entre os países do G20.
O país também é um dos únicos do mundo com capacidade de produção em massa de vacinas, o que ajudou a acelerar o programa brasileiro, iniciado meses depois da maioria dos países do G20. Com a conclusão da imunização geral da população, as fábricas da Fiocruz (governo federal) e do Instituto Butantan (governo de SP) têm potencial para exportar imunizantes para outros países em desenvolvimento, por exemplo.
Mas as ações e declarações de Bolsonaro durante a pandemia têm mostrado um obstáculo para o país no cenário internacional.
Ele é o único líder do grupo que não declarou ter se vacinado contra a covid-19. Além disso, o relatório final da CPI da Covid teve ampla repercussão na imprensa internacional, em especial as acusações contra Bolsonaro de crime contra a humanidade.Também correram o mundo nos últimos dias as declarações dele que associavam erroneamente as vacinas a um risco maior de Aids.
Bolsonaro, que defende suas ações durante a pandemia e nega qualquer irregularidade, também fez críticas duras a estratégias adotadas em diversos países, como lockdowns e máscaras, e à Organização Mundial da Saúde (OMS), braço da ONU fundamental para os planos globais de se preparar contra futuras pandemias como a da covid-19, que matou mais de 5 milhões de pessoas.
Em comunicado conjunto, a secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, e a ministra das Finanças da Indonésia, Sri Mulyani Indrawati, cobraram um plano do G20 para evitar que novos patógenos como o coronavírus Sars-CoV-2 se tornem pandêmicos. Ou seja, se espalhem rapidamente pelo mundo. "Todos nós lutamos pessoalmente contra o profundo custo humano e econômico causado por esta pandemia implacável e sem fronteiras. E enquanto estamos progredindo na luta contra a covid-19, também enfrentamos uma dura realidade: esta não será a última pandemia."
Para Yellen e Indrawati, a pandemia de covid-19, que matou mais de 5 milhões de pessoas, expôs a falta de preparação, de coordenação internacional e de mecanismos de detecção, prevenção e compartilhamento de informações junto à OMS.
Ethel Maciel, epidemiologista e professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), afirma à BBC News Brasil que o país tem capacidade de colaborar fortemente com esse esforço internacional graças à longa tradição brasileira na área de vigilância sanitária. "Temos sistemas de informação, grandes sanitaristas e epidemiologistas, instituições bastante fortes nesse monitoramento de doenças infecciosas."
Maciel diz, no entanto, que o governo Bolsonaro tem um impacto negativo direto nessas ações brasileiras por causa dos cortes do financiamento à ciência brasileira, principalmente a formação de pesquisadores. Em 2021, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) terá o menor orçamento dos últimos anos. Valores fundamentais para a pasta estão contingenciados pelo governo federal e sem prazo para que sejam liberados.
"A postura negacionista e a falta de investimentos, que chega a 90% de corte, certamente impactarão no futuro dessa possibilidade de construção de sistemas mais robustos e principalmente na formação de pessoas qualificadas, porque sem elas não é possível fazer esse monitoramento em tempo real do que está acontecendo no país."