Por anos, analistas de mercado e investidores estrangeiros insistiram em uma tese sobre a economia brasileira: a de que a aprovação de reformas estruturais seria vital para que o país entrasse em uma trajetória de crescimento semelhante a de outros emergentes, como Índia e China.
A equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, vem correndo contra o tempo para aprovar ainda este ano algumas dessas reformas desejadas por investidores — antes que o calendário do Congresso fique praticamente paralisado por conta das eleições de 2022.
No entanto, consultorias que trabalham diretamente com investidores estrangeiros disseram à BBC News Brasil que hoje a maior preocupação dos investidores estrangeiros não é com a aprovação de reformas — mas sim com a credibilidade e permanência do ministro Paulo Guedes no governo e com o andamento da pandemia de coronavírus.
Na visão dos analistas, as duas reformas com maior expectativa de serem votadas neste ano — a tributária e a administrativa — são vistas como importantes por investidores estrangeiros para melhorar as perspectivas de longo prazo do Brasil, mas nenhuma delas têm impacto imediato no que eles enxergam como o grande desafio da economia: que é evitar que a trajetória da dívida brasileira saia de controle.
O Brasil tem hoje uma relação dívida/PIB próxima de 90% — um patamar considerado alto para alguns países emergentes.
A forma de reduzir o tamanho do endividamento é produzindo superávits fiscais, ou seja, com a máquina pública arrecadando mais dinheiro do que gasta. No entanto, o Brasil vem produzindo déficits fiscais, e a pandemia agravou ainda mais essa situação, já que o governo se viu obrigado a gastar mais para compensar a redução brusca na atividade econômica.
Caso o endividamento saísse de controle, investidores estrangeiros passariam a duvidar da capacidade do Brasil de controlar sua inflação (já que, sem recursos suficientes de arrecadação, seria necessário emitir mais moeda ou refinanciar os empréstimos) e uma recuperação econômica — com a volta de empregos e crescimento — estaria ameaçada.
Para investidores estrangeiros, mesmo que as duas reformas na pauta não passassem este ano no Congresso, a trajetória da dívida nos próximos anos não dependeria exclusivamente delas.
Eles estão mais preocupados com o compromisso do governo de Jair Bolsonaro de não estourar o teto de gastos — ou seja, de aumentar desenfreadamente o gasto do orçamento, sem se preocupar se o Brasil tem capacidade ou não de suportar esses custos.
As duas maiores ameaças para a economia brasileira seriam uma eventual saída de Paulo Guedes, com entrada de um ministro da Economia mais "gastador", e uma piora da pandemia, que exigiria mais gastos, como o com auxílio emergencial, visto como vital para os brasileiros nos momentos de agravamento da pandemia.
Paulo Guedes, de Messi a goleiro
A visão dos investidores estrangeiros contrasta fortemente com o otimismo que se registrava antes da pandemia — quando havia uma empolgação geral com o discurso de Paulo Guedes, que prometia reformas profundas no gasto público e uma agenda robusta de privatizações.
"O investidor estrangeiro, e o mercado em geral, achava que o Paulo Guedes seria o Messi: o número dez da economia, que ia fazer golaço de tudo que é jeito, de calcanhar, de bicicleta", diz Lucas de Aragão, sócio da Arko Advice, uma das principais empresas de análise política do Brasil.
"Mas hoje o investidor vê o Paulo como um goleiro, que vai evitar alguns desastres maiores. E ele até já evitou recentemente, como quando convenceu o presidente que tirar o Bolsa Família do teto de gastos não era uma boa ideia. Eles (os investidores) têm medo que, com a saída do Paulo Guedes, entre alguém no ministério que não tenha esse mesmo compromisso ou a mesma proximidade com o Bolsonaro."
A Arko Advice, sediada em Brasília, elabora relatórios e mantém conversas semanais com cerca de 150 bancos e fundos estrangeiros que têm investimentos ou interesse no mercado brasileiro.
Os clientes da Arko incluem investidores estrangeiros dos mais diferentes níveis: desde fundos que entram no mercado brasileiro através de aquisição de ações de empresas nacionais na bolsa a multinacionais e outros grupos privados, que têm interesse em abrir operações e filiais no Brasil ou adquirir empresas através de fusões ou aquisições.
Segundo Aragão, para o investidor estrangeiro, a principal função do "goleiro Guedes" seria segurar o teto de gastos, contendo ímpetos que vêm de dentro do próprio governo para que se gaste mais.
Muitos entendem que o Brasil já "furou" em parte o teto, pois precisou gastar mais com auxílios emergenciais devido à pandemia — algo que muitos outros governos no mundo também tiveram de fazer, alguns em escala muito maior. No entanto, esses gastos são vistos como excepcionais e não-recorrentes.
"O maior temor dos investidores hoje, que é o que eu mais recebo de perguntas, é sobre um rompimento total do teto de gastos. Ele já foi meio rompido, está com uns furos. Mas eles têm medo agora de esse teto virar um 'rooftop' (terraço aberto) de gastos, onde não existe mais teto e se gasta à vontade."
Pandemia
A outra grande ameaça ao teto de gastos, segundo as consultorias, seria o agravamento da pandemia de coronavírus, já que o Brasil foi um dos países mais seriamente afetados pela covid-19.
O grupo Eurasia tem escritórios em diversas partes do mundo e envia relatórios semanais a investidores atribuindo notas de riscos associadas a cada país.
Antes da pandemia, o Brasil era classificado pela Eurasia como "positivo" — tanto na trajetória de curto prazo como na de longo prazo. Mas hoje — depois da deterioração fiscal forte que aconteceu com a pandemia — o Brasil aparece como "neutro".
"A preocupação maior no curto prazo é sobre o que vai acontecer com o Brasil se a pandemia piorar. O maior risco é que se faça uma abertura muito prematura da economia, e com isso venha uma terceira onda da pandemia e uma nova rodada de discussões em Brasília sobre como estender o auxílio emergencial", diz Christopher Garman, da Eurasia em Brasília.
Entre os possíveis riscos, que teriam repercussões negativas na economia brasileiras, estão o atraso na vacinação, a reabertura precoce da economia e o surgimento de novas variantes. Qualquer um desses fatores poderia desencadear um aumento nos números de casos, hospitalizações e mortes por covid — levando governo e Congresso a precisarem ampliar seus gastos de ajuda econômica.
E as reformas?
Lucas Aragão, da Arko, afirma que nos últimos anos o Brasil foi um dos países que mais fizeram reformas na sua economia.
Ele cita reformas trabalhistas, fim do imposto sindical, lei das licitações, saneamento, autonomia do Banco Central, lei do gás, nova lei de governança das estatais, entre outras.
Para os investidores estrangeiros com quem ele conversa, as duas principais reformas na pauta do Congresso hoje — a trabalhista e a administrativa — são importantes para mostrar que o país segue comprometido em melhorar o ambiente de negócios no país.
Christopher Garman, da Eurasia, ressalta que as duas reformas são importantes para mostrar aos investidores que o país não perdeu seu rumo, no entanto, elas são menos urgentes do que a reforma da Previdência, aprovada no primeiro ano do governo Bolsonaro.
Aquela era uma reforma com impacto direto no gasto fiscal brasileiro e na trajetória da dívida do país.
As reformas de agora terão apenas impactos de longo prazo. A reforma administrativa, por exemplo, só afetará novas contratações feitas pela máquina pública — ela não vai mexer com salários, carreiras e benefícios de servidores atuais.
E mesmo que a reforma venha a ser aprovada neste ano, Garman acredita que ela demorará a ser implementada, pois precisa ser regulada através de outras leis complementares, que precisarão ser discutidas em minúcias no Congresso.
Tanto Aragão quanto Garman também não acreditam em uma reforma tributária ampla — mas apenas em mudanças mais pontuais e modestas, como a unificação apenas de impostos federais em um só tributo. Essa reforma também não mudaria profundamente o valor arrecadado e a situação fiscal do país — mas serviria mais para racionalizar o confuso sistema tributário do país, uma tarefa que segundo eles é praticamente um consenso nacional.
Aragão e Garman acreditam que ainda há tempo para se aprovar ambas as reformas até abril de 2022 — que seria o limite para o Congresso Nacional fazer grandes mudanças, antes de parlamentares se engajarem totalmente nas eleições.
No entanto Aragão alerta que essa aprovação não virá sem dificuldades.
"O Congresso Nacional nos últimos anos está muito mais independente e autônomo. Aquela base aliada do passado que digeria toda e qualquer política pública do governo não existe mais. Hoje é um caminho de imensa discussão", diz o analista da Arko.
Outro problema seria o tempo finito do Congresso Nacional para lidar com diferentes assuntos ao mesmo tempo ao longo de um ano. Com a agenda atualmente dominada por questões consideradas hoje mais urgentes pela população, como os efeitos da pandemia e a CPI da Covid, questões como as reformas administrativa e tributária podem acabar ficando relegadas a um segundo plano.
Eleições 2022
Além das questões econômicas existe também na cabeça do investidor internacional a preocupação com o cenário político eleitoral e o que vai acontecer com a equipe econômica depois da eleição de 2022.
Na análise que Garman passa a seus clientes, ele afirma que dificilmente um candidato de terceira via comprometido com reformas — visto por muitos investidores como ideal — tenha chances de ganhar a eleição.
A Eurasia acredita que a maior probabilidade é de uma disputa entre Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva.
Aragão afirma que investidores estrangeiros costumam ser menos passionais e mais pragmáticos do que os nacionais na hora de analisar os candidatos e suas propostas.
"Até o momento, o que o investidor internacional me pergunta é muito direto ao ponto. Tipo: o Lula vai concorrer mesmo? Ele tem chances? Se ele concorrer, como será a campanha? E se ele ganhar, como será o Lula que entra na Presidência? É um Lula mais centrista, como vimos no Lula 1 (primeiro mandato, entre 2002 e 2005), ou mais à esquerda?", diz ele.
"Recentemente o Lula afirmou que os Estados Unidos têm uma relação dívida/PIB de 120% e questionou por que o Brasil não poderia aumentar mais a sua dívida. O investidor nacional olha aquilo e fica apavorado enquanto o estrangeiro para e pergunta: 'ele está querendo dizer isso mesmo ou é mais bravata?'. Ele é mais sóbrio."
"Mas não vejo nenhum desespero do investidor internacional em relação ao Brasil. Se eles perceberem que as coisas não vão do jeito do que gostam, eles 'viram a mão' ou saem por um tempo e voltam depois", diz Aragão.
Virar a mão é uma referência à forma como se pode investir no mercado acionário — de "comprado" em empresas nacionais (quando ele acredita em uma alta das ações) a "vendido" (quando ele acredita que as ações cairão).
"Eles não precisam estar no Brasil, se não quiserem."