Técnicos do governo terão a difícil missão de convencer o presidente Jair Bolsonaro a desistir da ideia de retirar a bandeira "escassez hídrica" das contas de luz. Apesar das chuvas que voltaram a cair no Sul e Sudeste nas últimas duas semanas, os reservatórios das hidrelétricas ainda estão muito distantes de recuperar um nível adequado e o acionamento de termoelétricas continua a todo o vapor, bem como a importação de energia elétrica de países vizinhos. Essa geração mais cara não será descartada neste momento e precisa ser paga, o que explica o aumento mais recente nas contas de luz.
Desde 1º de setembro, em razão da crise hídrica, os consumidores pagam um adicional de R$ 14,20 a cada 100 quilowatts-hora consumidos (kWh), um valor que pesa sobre o bolso dos brasileiros, já bastante pressionados por aumentos no gás de cozinha, gasolina e alimentos.
Foi justamente essa taxa que se tornou o novo alvo do presidente Jair Bolsonaro, que disse na quinta-feira, 14, que vai determinar ao ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, que dê fim à bandeira. "Dói a gente autorizar o ministro Bento decretar bandeira vermelha, dói no coração, sabemos as dificuldades da energia elétrica. Vou pedir para ele... pedir, não, determinar a ele que volte à bandeira normal a partir do mês que vem", disse Bolsonaro.
Caberá agora ao ministro e à sua equipe tentar explicar ao presidente que essa promessa não tem condições de ser cumprida, nem técnica nem financeiramente. Argumentos não faltam. No anúncio da nova bandeira, o ministro Bento Albuquerque, já havia deixado claro que ela iria vigorar por oito meses, entre setembro e abril de 2022.
Esse seria o tempo mínimo necessário para arrecadar os recursos para pagar pela geração mais cara, mas o valor da bandeira tem sido insuficiente para fazer frente a isso. Técnicos da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) já haviam calculado que a bandeira deveria subir para quase R$ 25 por 100 kWh, mas o valor teria ficado menor devido a apelos do ministro da Economia, Paulo Guedes, e do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, preocupados com o impacto da decisão sobre a inflação.
Se a situação no início de setembro já era difícil, ela piorou em outubro, mostram indicadores do setor elétrico, em um cenário muito diferente do que o descrito pelo presidente. Isso porque a segurança do abastecimento tem sido garantida por meio de termoelétricas ainda mais caras do que o inicialmente projetado.
Nas últimas semanas, o governo autorizou o acionamento de termelétricas com custo de mais de R$ 2 mil por megawatt-hora (MWh). O aumento dos preços internacionais de gás natural é uma das causas desse custo. Na conta de luz, por outro lado, o consumidor paga um custo médio de energia de R$ 250 por MWh. A diferença entre o custo real e o embutido nas tarifas tem sido parcialmente coberto justamente pelas bandeiras. Outra despesa fora da conta é a da importação de energia do Uruguai e da Argentina, que têm consumido mais de R$ 1 bilhão mensais, também pagos pelas bandeiras.
Esse descasamento entre as receitas das tarifas pagas pelo consumidor e o custo de geração da energia teria gerado um buraco de mais de R$ 10 bilhões nas contas das distribuidoras. A expectativa é que essa conta aumente em algo entre R$ 4 bilhões e R$ 5 bilhões até janeiro, mesmo com a cobrança da bandeira escassez hídrica. De acordo com o MME, esse tema será tratado na próxima quinta-feira, 21, em reunião com representantes da agência reguladora e da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee).
Cenário preocupante
Autoridades já sinalizaram que o cenário ainda está longe de estar confortável. Na quarta-feira, 13, o diretor-geral do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), Luiz Ciocchi, disse que as chuvas chegaram em boa hora, mas não resolvem o problema do setor. "É muito cedo para ter a real percepção da estação chuvosa", disse.
Segundo Ciocchi, o acionamento das térmicas e critérios mais flexíveis para permitir a transmissão de energia de uma região para outra estão completando um ano e vão permitir que o País não enfrente problemas de racionamento ou apagão até o fim de 2021. Na melhor das hipóteses, as termelétricas poderiam ser desligadas ao fim do período úmido, em abril. E até lá, essa energia produzida pelos geradores precisará ser paga pelas distribuidoras e pelo consumidor - justamente por meio da bandeira.
Luiz Barroso, presidente da PSR, maior consultoria de energia do País, disse que não é hora para comemorar o fim da crise hídrica. "O cenário só 'despiorou'. Todas as térmicas do País seguem ligadas. E esta 'despiorada' veio combinada com um forte aumento de preços de combustíveis nos mercados globais, que afetam os custos de muitas destas térmicas e por consequência as tarifas", disse.
"Não é a hora de reduzir a bandeira. Reduzi-la agora vai criar uma pressão no fluxo de caixa das distribuidoras para o pagamento destes custos, que ficaram maiores, e aumentar mais ainda a pressão para reajustes futuros, visto que os valores financeiros não arrecadados via bandeira vão para o reajuste tarifário em 2022", acrescentou Barroso.
Para o presidente da Associação Brasileira de Grandes Consumidores de Energia (Abrace), Paulo Pedrosa, o setor elétrico passa por duas crises, uma conjuntural e outra estrutural. "E essas duas crises se retroalimentam. A crise estrutural é maior que a crise hídrica, e o principal sinal dela é o modelo de preços, que, mais uma vez, aponta preços de R$ 250 por MWh enquanto o sistema aciona usinas de mais de R$ 2 mil. Foi esse modelo que esvaziou os reservatórios e criou a crise hídrica. Ele precisa ser urgentemente corrigido", afirmou.
O fim da bandeira escassez hídrica, por sua vez, só diminuiria as contas de luz no curto prazo. A despesa, necessariamente, seria repassada às contas de luz em 2022, por meio dos reajustes anuais de cada distribuidora, com incidência de juros. Nas palavras de um especialista, "a febre não passa quando se quebra o termômetro". Esse deve ser um dos argumentos dos técnicos para tentar persuadir Bolsonaro contra a ideia de acabar com a bandeira: reajustes elevados tiram votos fundamentais em um ano eleitoral.
Se nem assim convencer Bolsonaro, o ministro Bento Albuquerque pode, sim, dar fim à bandeira escassez hídrica. Isso porque a taxa foi criada pela Câmara de Regras Excepcionais para Gestão Hidroenergética (CREG), órgão que nasceu por meio de Medida Provisória e é presidido pelo ministro com participação de outros ministros, entre eles Paulo Guedes.
As decisões da CREG são tomadas a partir de recomendações do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE), formado por órgãos do setor de energia também presidido por Albuquerque. A MP também prevê que o ministro poderá praticar atos "ad referendum", o que significa poder definir medidas de forma individual, antes das deliberações com o restante das autoridades. Diferentemente das bandeiras verde, amarela e vermelha, a bandeira escassez hídrica não integra o sistema de bandeiras que é gerido pela Aneel.