O fato de os mercados em todo o mundo reagirem com extremo mau humor a cada notícia que indique o avanço do coronavírus não significa, necessariamente, que um desfecho catastrófico esteja no radar dos investidores.
É justamente a incerteza — baseada no fato de que até agora não se sabe por quanto tempo e como o vírus irá atrapalhar a atividade das pessoas, das empresas e das economias — a principal fonte do desagrado que leva as bolsas a caírem no mundo todo e o dólar a subir em muitos países.
No Brasil, empresas já começam a sentir os efeitos do congestionamento do sistema portuário chinês, que está praticamente parado por causa do coronavírus. A LG Electronics do Brasil, por exemplo, informou nesta semana que poderá suspender em março a produção de celulares em sua fábrica de Taubaté, porque não está recebendo muitos componentes chineses necessários à fabricação.
Além disso, uma pesquisa realizada pela Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee) com 50 empresas e divulgada no dia 21 de fevereiro apontou que 57% das entrevistadas já apresentavam problemas no recebimento de materiais, componentes e insumos provenientes da China — mais do que na pesquisa anterior, feita duas semanas antes.
"A China é o maior exportador mundial e o maior importador mundial. Como tem uma participação grande no comércio global, tudo que acontece com a China tem reflexo", explica o presidente-executivo da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto de Castro, em entrevista à BBC News Brasil.
Cada vez que um exportador embarca produtos em um navio e não consegue desembarcar a produção no país de destino, os custos aumentam. "O custo da diária de um navio varia entre US$ 50 mil e US$ 100 mil. Alguém está pagando. O embarque e o desembarque para exportar ou importar têm que ser ágeis porque isso aumenta o custo da empresa".
Nesta semana, repercutiu negativamente entre os investidores a notícia de que, quase dois meses depois de atingir a China, o novo coronavírus começou a se espalhar também pela Itália, que se tornou o novo centro da crise ligada ao surto com mais de 400 infectados e 12 mortes — todos os mortos eram pessoas idosas, que apresentavam quadros clínicos já muito comprometidos por outras doenças.
É justamente o receio de que situações como essa se espalhem ao redor do mundo — a doença já infectou mais de 83 mil pessoas em 50 países e agora há mais novos casos sendo descobertos fora da China do que dentro — a principal motivação que leva investidores a venderem ativos de risco e fugirem para opções mais seguras, como dólar e ouro, até o cenário ficar mais definido. Ou claro, até que a transmissão do vírus seja contida pela ciência.
Temor sobre a transmissão fora da China
Na quinta-feira (27/02), dois anúncios desagradaram os investidores: o de que o governador da região da Lombardia, a mais rica da Itália, decidiu entrar em quarentena autoimposta por duas semanas, em razão da alta incidência de casos. E, na cena doméstica, o Ministério da Saúde confirmou também o primeiro caso de novo coronavírus no Brasil. No dia, o índice Ibovespa caiu 7%, na maior queda registrada desde de 2017, e o dólar subiu 1,08%, a R$ 4,44.
Na semana a tensão nos mercados continuou, e o dólar acumulou alta de 2,01%, fechando a R$ 4,48 na sexta-feira (28/02); o Ibovespa caiu mais de 9%.
O pessimismo se estendeu às autoridades. "É um fenômeno que está todo mundo se debruçando agora. O risco é no preço de commodities e em um crescimento menor do mundo. A gente tem de estar preparado e lidar com a situação", afirmou o secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida.
A diretora-gerente do FMI, Kristalina Georgieva, disse que o surto de vírus provavelmente reduzirá o crescimento econômico da China este ano para 5,6%, 0,4 ponto percentual a menos em relação ao que previa em janeiro, e reduzirá 0,1 ponto percentual do crescimento global.
A doença causada pelo novo coronavírus, a covid-19, não é tão mortal quando comparada a outros coronavírus previamente registrados, como a Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars) e a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (Mers).
Enquanto a taxa geral de mortalidade da nova doença é de 2,3%, de acordo com um estudo realizado pelo Centro Chinês de Controle e Prevenção de Doenças (CCDC), o risco de morte no caso da Sars em 2003 era de aproximadamente 10%; já da Mers girava em torno de 20% a 40%, dependendo do local.
O que assusta sob a ótica econômica, de acordo com economistas e especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, é a velocidade de transmissão e o amplo alcance geográfico do vírus, segundo Luís Sales, analista de mercado da Guide Investimentos.
"Por ser uma doença de transmissão de humanos para humanos, e por ter esse alcance geográfico, causa principalmente o medo, que gera outros fatores. Se eu ia fazer uma viagem, não faço mais. Empresas ficam paradas, portos recebem menos produtos, as empresas geram menos receita. Todo o fluxo é afetado."
A reação negativa dos mercados reflete, mais do que um cenário muito assustador, a incerteza a respeito do que o investidor ainda não consegue precificar. "O problema maior é a insegurança. Não se sabe muito bem quantificar, não dá para precificar, então é melhor ficar na segurança. Vender ativos mais arriscados, como commodities e moedas de países emergentes, e busca segurança em ativos como o ouro, os títulos da dívida americana, da dívida alemã, de bancos alemães, ou moedas fortes como o dólar, o iene e o franco suíço", diz Silvio Campos Neto, economista e sócio da Tendências.
Para o economista, a notícia de que o vírus passou a se espalhar pela Europa aumentou a probabilidade de uma propagação mundial também em outros países com maior peso para a economia global, como os Estados Unidos.
"Apple, Microsoft, muitas delas têm fábricas na China. Começam a surgir alertas de empresas avisando que o resultado do primeiro trimestre já está comprometido. O risco agora é de que esse efeito se estenda para além do primeiro trimestre", afirma Neto.
A Apple, por exemplo, anunciou nesta semana que precisou fechar 29 de suas 42 lojas na China no começo do mês, mas que elas já começam a funcionar em horários reduzidos nesta semana. A empresa já alertou que não vai mais cumprir sua estimativa de receita do primeiro trimestre por causa da epidemia de coronavírus.
No Brasil, o presidente executivo da Abinee, Humberto Barbato, já vê agravamento da situação das indústrias que dependem dos componentes externos e diz que 17% das pesquisadas informaram que não devem atingir a produção prevista para o 1º trimestre deste ano. A produção do período deverá ficar, em média, 22% abaixo da projetada.
Para Barbato, o problema abre uma oportunidade para que se volte a pensar na produção local de componentes utilizados na indústria do setor. "A situação expõe nosso alto índice de vulnerabilidade em relação à importação de componentes", diz. De acordo com a Abinee, 42% desses itens são provenientes da China, principal origem das importações de componentes do Brasil, totalizando US$ 7,5 bilhões em 2019. Os demais países da Ásia foram responsáveis por 38% das importações de componentes elétricos e eletrônicos em 2019.
Portanto, a Ásia representa 80% da origem dos componentes elétricos e eletrônicos do Brasil.
Oportunidade para embolsar os ganhos
O surgimento do novo coronavírus vem em meio a um cenário que já previa uma desaceleração da economia da China, a segunda maior do mundo, levada principalmente pelos efeitos da guerra comercial entre a China e os Estados Unidos. Já no começo do ano o Banco Mundial previa que a economia chinesa crescesse menos de 6% em 2020, o que seria o ritmo mais lento em quase três décadas.
Mas para o mercado de ações, o novo coronavírus interrompeu um período de bonança. O Ibovespa, principal índice da bolsa brasileira, fechou 2019 com uma valorização acumulada de 31,58%. Nos EUA, o Dow Jones subiu 22,3%, na melhor performance desde 2017, e as bolsas americanas registraram nas primeiras semanas de fevereiro novas máximas históricas para os três principais indicadores acionários de Nova York.
No mercado financeiro, quando as bolsas sobem por muito tempo, os investidores veem oportunidade de vender os ativos para embolsar os ganhos, o que também pode ter influenciado em parte as baixas desta semana.
E o dólar?
Desde meados do ano passado, a moeda americana já vinha escalando para se firmar em patamares mais próximos aos R$ 4. Cotado a R$ 4,20 em setembro, chegou a fechar 2019 cotado a R$ 4,03, quando o temor em torno da guerra comercial foi amenizado pelo anúncio de que China e Estados Unidos chegaram a um acordo na primeira fase de negociações comerciais entre os dois.
Em transmissão nas suas redes sociais nesta semana, o presidente Jair Bolsonaro atribuiu a alta da moeda ao novo vírus. Segundo ele, o câmbio vai influenciar nas importações brasileiras e até no preço do pão.
"Estamos tendo problema nesse vírus aí, o coronavírus. O mundo todo está sofrendo. As bolsas estão caindo no mundo todo, com raríssimas exceções. O dólar também está se valorizando no mundo todo, e no Brasil o dólar está R$ 4,40... [perguntando a uma pessoa fora do quadro] É isso mesmo? R$ 4,41? R$ 4,44. A gente lamenta, porque isso aí, mais cedo ou mais tarde, vai influenciar naquilo que nós importamos, até no pão, o trigo."
Mas Campos Neto diz que, além do coronavírus, há outros fatores na conjuntura brasileira que favorecem a alta do dólar, como os juros brasileiros, que estão no patamar mais baixo da história, com a taxa Selic em 4,25% ao ano.
"Ninguém consegue precificar essa queda brutal nos juros ainda, porque é inédita. E, para moedas muito ligadas a commodities, como é o caso do real, a perspectiva de que menos dólares virão pelo canal da balança comercial também contribui (para a alta da moeda americana)."
O economista diz que, no campo doméstico, a incerteza política causada pelas controvérsias do governo Bolsonaro também influencia. "É um pouco dificil de separar o efeito de cada fator, mas que tem (efeito da instabilidade política) é muito claro. É diferente de ter um ambiente onde se tem uma calmaria."
Do pouco que se pode prever sobre o futuro em meio aos desfechos relacionados ao vírus, Campos Neto destaca que, provavelmente, o dólar não voltará mais a patamares abaixo de R$ 4 em um futuro próximo.
"Dificilmente volta pra perto dos R$ 4. Cambio é dificil de projetar, mas atualmente uma volta para a normalidade seria em torno dos R$ 4,15, R$ 4,20, refletindo o juro mais baixo e o clima político interno."
Sales, da Guide Investimentos, diz que nas próximas semanas a tendência é o mercado continuar a acompanhar e a reagir aos dados da Organização Mundial da Saúde e aos anúncios das empresas, em busca de evidências sobre os efeitos do vírus. "Vão acompanhar novos casos, mortes, recuperação e sinais de paralisação", diz.