BRASÍLIA - Autora de um estudo que mostra haver no Supremo Tribunal Federal (STF) uma tendência favorável a Estados em julgamentos contra a União envolvendo questões fiscais, a advogada da União Andrea Dantas Echeverría afirma que a Corte precisa repensar a responsabilidade dos governos estaduais. "De nada adianta alterar as leis e fazer uma reestruturação de incentivos para os Estados se, na hora que eles (governadores) procuram o Supremo, o Supremo retira aquilo", afirmou ao Estadão/Broadcast.
Confira os principais trechos da entrevista
Seu estudo mostra que os Estados ganharam 87,2% das ações movidas por eles contra a União envolvendo questões fiscais até 2017. De 2018 para cá, nota-se alguma reversão no cenário?
Não tem uma previsão de reversão dessa tendência no STF, não.
Qual é a consequência para a União?
Na União, um dos problemas essenciais é o descontrole em termos de transferência de verbas. O argumento que existe é que tem uma concentração de competência legislativa na União, que é responsável por fazer as leis e as políticas públicas, e os Estados não conseguem se adequar. Isso deu problema porque os Estados tinham autonomia de dinheiro e não conseguiam se adequar. Aí veio uma série de reformas que fechou com a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal), que centralizou o dinheiro na União. A União só vai repassar o dinheiro para quem tiver saúde fiscal. Se não tem equilíbrio fiscal, não vai receber dinheiro até conseguir o equilíbrio de novo. Dois problemas surgem aí: em alguns casos os Estados não conseguem se reequilibrar, porque não conseguem demitir servidor, não conseguem alterar a Previdência, porque toda a parte legislativa está fixada na União. E o segundo problema é que eles falavam que precisavam daquele dinheiro. No início nem justificavam, falavam que era essencial para a população, que sem dinheiro não teria como pagar a política (pública), a população vai sofrer... até 'não é justo' tem. Aí o STF deferia a liminar, que é imediata, e passava as verbas para os Estados. Qual é o incentivo para o Estado ajustar suas contas se ele não tem nenhuma punição pela não adequação? A grande questão aqui é a demonstração de que várias das punições previstas na LRF, que eram para controlar o equilíbrio fiscal dos Estados, não foram implementadas por conta do STF. O STF flexibilizou tanto a LRF que alguns artigos não têm eficácia nenhuma.
O STF deu sua parcela de contribuição para a crise vivida hoje pelos Estados?
Sim. É claro que não é parcela única. A crise fiscal é muito complexa, tem vários elementos. Mas tem um elemento que ainda não tinha sido analisado e que tem um peso, que é o Supremo Tribunal Federal. De nada adianta alterar as leis e fazer uma reestruturação de incentivos para os Estados se, na hora que eles (governadores) procuram o Supremo, o Supremo retira aquilo. Talvez não tivesse resolvido (se o STF não tivesse flexibilizado), mas talvez não estivesse tão ruim quanto está hoje. Mas os ministros têm uma ideia sedimentada de que todo problema fiscal é causado pela União, que desde os anos 1990 vem aumentando a arrecadação em detrimento dos Estados, e por isso a União não faz mais que sua obrigação ao resgatar os Estados, transferir verba e fazer tudo o que for preciso. A União fez uma recentralização do federalismo com o intuito de controlar. Mas a centralização não foi tão proeminente quanto os ministros pensam.
Como fica a discussão de um novo Pacto Federativo, com mais recursos para Estados, diante desse precedente?
Isso passa necessariamente por uma mudança de mentalidade dos ministros do STF. (Depende) De o Judiciário entender que, quando você aumenta a autonomia de um ente subnacional, você tem que aumentar a responsabilidade. Não pode manter a responsabilidade no centro (União) e aumentar a autonomia financeira, porque isso foi feito antes dos anos 1990 e já deu errado. Não pode fazer isso de novo. Mas adianta você fazer isso politicamente e depois os Estados saberem que vão entrar no STF e conseguir uma decisão favorável que vai reverter esse quadro? Não. Em tese, teria que haver uma sinalização. Se o Executivo e o Legislativo fizeram uma reforma, toda uma estrutura que é delicada para estabelecer um equilíbrio fiscal, o STF não pode vir e derrubar essa estrutura. Não é competência dele. Ele tem que analisar as consequências das decisões. Tem que entender o impacto global disso, não só naquela ação específica.
Para rever o Pacto Federativo, além de ter as receitas e as obrigações, teria de incluir o STF nessa repactuação?
O STF tem que repensar a responsabilidade dos Estados enquanto entes federados. Porque hoje o argumento principal dos ministros é que os Estados não têm outra opção, se a União não passar o dinheiro, não fizer o resgate, os Estados vão falir.
E quem socorre a União?
Ninguém socorre a União. Em tese, o pensamento é que a União pode emitir dinheiro ou título da dívida, tem uma flexibilidade financeira que os Estados não têm mais. Só que essa flexibildade financeira não é uma árvore de dinheiro, e ela está bem na risca.
O STF tende a ficar do lado de quem se diz mais fraco?
Na verdade o que o STF quer mesmo, e acaba não sabendo como fazer, é exercer o grande papel de guardião dos direitos fundamentais da Constituição e prover serviço público da melhor qualidade para todo mundo. Esse é o argumento dele. As políticas públicas precisam ser feitas nos Estados e elas dependem do dinheiro da União. Só que a Constituição Federal foi estabelecida sobre uma base de direito fundamental muito grande e não percebeu que o fiscal não tinha como dar conta de todos. Acho que o STF ainda está muito mais focado em direito fundamental e pouco focado em questão fiscal.
O STF precisa conciliar mais o direito fundamental com equilíbrio fiscal?
Isso. O STF fala que a população não pode ser prejudicada pelo governador inadimplente, por exemplo. Só que quando você continua repassando uma verba para esse governador inadimplente, você está repassando uma verba que ele não está nem aplicando na população. Segundo ponto: aquilo vai gerar um desequilíbrio fiscal, que vai prejudicar a população. O STF tem que entender que equilíbrio fiscal anda junto com a garantia de direito fundamental. É horrível, mas tem um livro que fala do custo do direito: se não há dinheiro, você não tem direito - direitos sociais, neste caso. Como a União vai fazer política pública se não tem dinheiro?
Os Estados são de fato indefesos?
Os Estados têm muitos problemas, mas se a trava fosse realmente tão grande, não tinha Estados que conseguiram sair da inadimplência, como Espírito Santo ou Ceará. O problema é que, quando você teve um aumento de distribuição (de dinheiro) para os Estados, quase tudo aquilo foi usado para aumentar despesa com pessoal, não para fazer investimento. Aumentar gasto com pessoal é uma medida muito populista. O Brasil é um país populista, e quanto mais próxima a pessoa está do governante, mais populista ele será. Isso é um clássico da ciência política. Então não é que eles estão indefesos. Eles estão presos numa carcaça, só que o nível de prisão foram eles que construíram. E é muito difícil reverter, porque eles não têm instrumentos para conseguir apertar a máquina pública. Mas se eles tivessem, fariam (o aperto)? Não sei.