BRASÍLIA - O Tribunal de Contas da União (TCU) encontrou indícios de que ao menos dois ministérios driblaram o Orçamento e o Congresso Nacional para gastar mais em 2018, durante a gestão do ex-presidente Michel Temer, e ainda deixaram a conta para o governo Jair Bolsonaro pagar em 2019.
A prática fere a Lei de Responsabilidade Fiscal, a Constituição e pode ser considerada crime contra as finanças públicas.
Segundo documento obtido pelo Estadão/Broadcast, Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCTIC) executaram R$ 1,278 bilhão em despesas sem que houvesse autorização no Orçamento. Sem a dotação, os gastos não foram sequer alvo de empenho, que é a primeira fase do rito de gastos e sinaliza o reconhecimento daquele compromisso. Elas também escaparam de qualquer bloqueio nos gastos por falta de receitas.
Esses "esqueletos do Orçamento" foram descobertos pelo TCU porque as duas pastas registraram a dívida como passivo contábil no fim de 2018. No início deste ano, a cifra começou a ser empenhada e passou a ser paga pelo governo Bolsonaro por meio da rubrica Despesas de Exercícios Anteriores (DEA), geralmente usada em casos de exceção (como uma conta de luz que excedeu o valor previsto no último mês do ano, sem tempo hábil de ajuste) e com valores menos vultosos.
Só no primeiro semestre deste ano, o governo já desembolsou R$ 1,1 bilhão em despesas discricionárias (aquelas que o governo pode cortar ou remanejar) de exercícios anteriores, quase o mesmo que no ano inteiro de 2018 (R$ 1,2 bilhão). São gastos diferentes dos chamados restos a pagar, devidamente inscritos no Orçamento, mas que acabam passando de um ano para o outro.
O caso chamou a atenção da área técnica, que agora quer fazer uma inspeção para verificar se há outros esqueletos semelhantes e apurar os gestores responsáveis. A avaliação preliminar é de que são episódios "setoriais", sem uma articulação no comando central como no caso das "pedaladas fiscais", que levaram afastamento da ex-presidente Dilma Rousseff.
O pedido de inspeção foi feito ao relator, ministro Bruno Dantas, responsável pela análise das contas deste ano, e deve avaliar ainda a conduta dos gestores atuais do Ministério da Cidadania (que incorporou atribuições do MDS) e do MCTIC perante a descoberta do passivo. Antes do achado dos auditores, nenhum alerta formal foi feito pelas pastas ao órgão de controle.
Segundo apurou o Estadão/Broadcast, o ministro deve atender à solicitação para a nova inspeção. Dantas tem tido um alinhamento próximo com a unidade técnica do Tribunal, como já aconteceu em outras questões, como a do bônus dos servidores da Receita.
O maior esqueleto foi deixado pelo MDS. De acordo com a corte de contas, R$ 1,2 bilhão do Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS) ficou de fora do Orçamento em 2017 e 2018. A pasta chegou a solicitar no ano passado um crédito extra ao Congresso Nacional para conseguir executar todas as despesas previstas, mas não foi atendida. Técnicos veem a manobra como uma tentativa de "tocar a política pública na marra", contornando as decisões do Legislativo sobre o Orçamento.
Para se ter uma ideia, um terço do orçamento do FNAS no primeiro semestre serviu para quitar esses passivos. Mesmo assim, ainda resta um débito de R$ 938,3 milhões e não há espaço sequer no Orçamento deste ano para sanar a dívida.
No MCTIC, o problema envolve bolsas do CNPq, com um passivo de R$ 77 milhões. Ao deparar com a falta de dinheiro, o ministério em vez de cortar ou suspender bolsas continuou executando a política normalmente. O pagamento da dívida agora consome espaço no Orçamento de 2019, no teto de gastos (mecanismo que limita o crescimento dos gastos à inflação) e afetam o resultado primário - e bolsas de pesquisa já foram canceladas por falta de dinheiro.
"Além de distorcer o resultado fiscal do exercício, a assunção de obrigação sem dotação orçamentária suficiente é expressamente vedada pela Constituição Federal (art. 167, inciso II), podendo ser enquadrada também como crime contra as finanças públicas", diz o relatório.
Há ainda uma grande preocupação da corte de contas com as despesas inscritas no chamado restos a pagar (registradas corretamente no Orçamento, mas transferidas de um ano para o outro), que têm um saldo muito elevado. Com a crise fiscal das contas públicas, o Tribunal está mais rigoroso no pente-fino que é feito nessas despesas, o que têm surpreendido. A unidade técnica responsável pela análise adquiriu uma experiência muito grande, o que talvez não permitiria essas descobertas há 10 anos. O TCU, avaliou uma fonte, "elevou o sarrafo" nas auditorias.
O ministro da Cidadania, Osmar Terra, que foi ministro do Desenvolvimento Social na gestão Temer, informou via assessoria que quitou em 2017 todos os repasses atrasados do Sistema Único de Assistência Social e realizou um repasse de R$ 2,9 bilhões para fundos estaduais e municipais da Assistência Social. "Já em 2018, os recursos alocados vinham apresentando uma significativa redução. O Ministério, à época, adotou medidas para garantir a continuidade dos serviços ofertados pela rede", afirmou. O ministro confirma ainda que o Congresso redirecionou 87% do valor que havia sido solicitado como crédito extra, "o que agravou a situação orçamentária do Fundo". "Em 2019, estão sendo adotadas novas medidas para ajustes dos recursos", diz a nota.
O ex-ministro do MDS Alberto Beltrame, que comandou a pasta de abril de 2018 até o fim do governo Temer, não retornou aos pedidos da reportagem.
O ex-ministro do MDS Alberto Beltrame, que comandou a pasta de abril de 2018 até o fim do governo Temer, afirmou que o aumento de despesas do Fundo Nacional de Assistência Social neste ano se deve à redução do Orçamento do ministério no ano passado. Ele lembrou que foi pedido um crédito extra ao Congresso em 2018, mas 87% dos recursos foram direcionados aos outros ministérios. Segundo ele, as contas do Ministério de Desenvolvimento Social de 2018 foram aprovadas pela Controladoria-Geral da União (CGU).
A assessoria do ex-ministro Gilberto Kassab informou que "a execução orçamentária do exercício de 2018 sob responsabilidade da secretaria-executiva do Ministério da Ciência, Tenologia, Inovações e Comunicações seguiu estritamente a legislação vigente". Ele afirma ainda que o "CNPq é uma autarquia com autonomia administrativa". A gestão atual do MCTIC não retornou até a publicação desta reportagem.