O CARF (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) ampliou a multa sobre o técnico Cuca, do São Paulo, no mês de abril. Ele teria deixado de recolher R$ 3,6 milhões de impostos entre 2006 e 2008. O técnico recebia salários por meio de sua empresa e pagava, como pessoa jurídica, uma alíquota de 15% a 25%. Para a Receita Federal, Cuca deveria ter sido tributado como pessoa física e recolhido 27,5% de imposto. Casos assim serão cada vez mais frequentes na opinião do advogado Rafael Marchetti Marcondes, especialista em Direito Tributário e autor do livro A tributação do Direito de Imagem no Esporte. "Atletas e técnicos estão no foco da Receita Federal, que criou uma equipe específica só para cuidar dos casos de atletas e também dos artistas", explica o especialista.
Em entrevista ao Estado, Marchetti explica as diferentes linhas de argumentação utilizadas pela Receita Federal para as autuações dos últimos anos e comenta a autuação do técnico do São Paulo, que deve recorrer à Justiça Federal.
Vários técnicos e atletas vem sendo autuados pela Receita. Quando ela começou a apertar a fiscalização?
Nós tivemos as primeiras atuações no início dos anos 2000. Foram autuados Felipão, quando defendia o Palmeiras em sua primeira passagem, o Vanderlei Luxemburgo. Foram dois casos emblemáticos. Os dois instituíram empresas (pessoa jurídica) para receber a totalidade dos vencimentos pagos pelo clube. Por que receber por uma empresa e não pela pessoa física? A resposta é matemática. Toda vez que uma pessoa é tributada na pessoa física ela sofre a incidência de Imposto de Renda de 27,5%. Quando a pessoa tem um
a empresa, a tributação é um pouco diferente. São três tipos de sistemática. A mais utilizada por empresas de jogadores, técnicos e mesmo artistas se encontram no lucro presumido. Nessa forma de apuração, os tributos que ela paga e as deduções autorizadas pela lei geram uma carga tributária em torno de 16%, dependendo da arrecadação da empresa.
Em 2015, a Receita Federal criou um grupo de estudo especializado na análise de artistas e esportistas. O potencial de ganho desses profissionais com a utilização da imagem cresceu muito. São valores consideráveis, de 30 mil, 50 mil ou 100 mil. Ato contínuo vem uma autuação gigantesca do Neymar de R$ 188 milhões. Essa autuação envolvia a transferência do Santos para o Barcelona e também os direitos de imagem. Esse caso gera um boom e um movimento geral de aperto da fiscalização em relação aos clubes e atletas. Isso vem gerando uma série de autuações em cascata.
Os clubes também são beneficiados?
Isso gera um benefício para o clube. É um interesse mútuo. Pelo que observamos no mercado, isso parte de uma iniciativa do próprio clube. Quando paga salário, ele tem de recolher férias, 13º salário, INSS, FGTS e contribuição previdenciária que incide sobre a folha salarial. Isso encarece o custo do profissional. Quando ele faz a opção de fazer os pagamentos para uma empresa, essas contribuições deixam de existir. O clube tem uma redução sensível de sua carga tributária. O que não é enquadrado como salário não tem essa incidência.
O que é direito de imagem?
É uma garantia reconhecida pela Constituição para que cada indivíduo tenha assegurado o direito sobre sua fisionomia. Temos de pensar na imagem em duas vertentes. Uma é a vertente direcionada ao aspecto físico, como a pessoa se externaliza, os traços característicos. Outra vertente é a patrimonial. A imagem não é o só aquilo que se espelha. A pessoa constrói uma imagem relacionada à reputação. A pessoa espelha uma questão moral, um excelente profissional, um jogador habilidoso.
Temos um aspecto tangível e outro intangível?
Perfeito. Essas duas dimensões acabam se aliando.
Existe certa resistência para aceitar o uso do direito de imagem?
Sim. A fiscalização tem mostrado uma resistência. Antigamente, ela foi de fato utilizada por muitos clubes e atletas como meio de disfarçar salários. Os clubes pagavam salários chamando de direito de imagem, em função da considerável redução da carga tributária. Isso foi utilizado em larga escala, o que gerou uma mancha. Quando se pensa em direito de imagem, já se vê, via de regra, como algo errado. Não é. Isso está previsto em lei. É uma prática legal que deve observar condições e limites. Como foi mal utilizada, ela deixou essa mancha perante a mídia, a população e a própria Receita Federal. Hoje, a Receita adota uma premissa que tudo que é feito utilizando direito de imagem é equivocado e errado. Assim, o clube, o atleta e o treinador que se resolva para provar que o que ele fez não estava errado. Existe uma inversão.
Qual é a argumentação da Receita Federal?
A Receita Federal argumenta que o direito de imagem é um direito personalíssimo, ou seja, um direito que pertence necessariamente ao indivíduo. Ele transfere a imagem dele para a empresa, que passa a explorá-la em seu nome. A Receita argumenta que, se o direito de imagem é personalíssimo, é indissociável do indivíduo, ele não pode ser transferido para um terceiro, seja pessoa física ou jurídica. Quando a empresa explora a imagem de um indivíduo, ela utiliza um direito que ela não poderia ter. Essa argumentação faz certo sentido. É coerente. Na prática, vale o contrário.
Vamos pensar em um caso clássico. O piloto Ayrton Senna morreu em um acidente em 1994 em Ímola. A imagem dele, a voz e o nome continuam sendo usados pelos herdeiros. Depois de 25 anos, a imagem dele continua sendo explorada por terceiros. Então, o argumento de que a imagem é indissociável do indivíduo não é verdadeiro na prática. A legislação ratifica o que vemos na prática. A legislação reconhece que a imagem assumiu um caráter econômico. Ela tem valor. Ela pode ser cedida temporariamente para um terceiro. Nós tínhamos uma série de exemplos de direitos personalíssimos que eram explorados por terceiros. Os profissionais liberais, como dentistas, psicólogos, advogados e jornalistas, são pagos por habilidades específicas. Esse pagamento, em geral, é feito para as empresas. Isso é reconhecido pela legislação do Imposto de Renda e do INSS, por exemplo, desde 1947. Por que admitir que profissionais liberais possam constituir uma empresa para explorar uma atividade que, a princípio, é personalíssima, e não admitimos que o atleta possa constituir uma empresa e transferir para ela um direito personalíssimo, que diz respeito a ele. Não é um tratamento desigual para pessoas que estão em situação semelhante?
O que foi feito?
Isso gerou e ainda gera muita discussão. A Lei Pelé, particularmente, foi alterada em 2015 pela Lei 13155 que passou a prever que a imagem pode ser explorada por meio de empresas. A lei determinou um limite. Do total dos vencimentos que o clube paga para o atleta apenas 40% podem ser pagos como direito de imagem. Os 60% remanescentes devem ser pagos como salário. A lei veio regulamentar e esclarecer.
A Receita Federal mudou um pouco a argumentação. A lei reconhece a possibilidade de pagamento, desde que observado o limite de 40% para pagamento em direito de imagem. É preciso que aquilo que empresa pagou a título de direito de imagem efetivamente representava isso. O clube e o atleta têm tem de demonstrar que a imagem foi utilizada para fins comerciais ou promocionais pela instituição pagadora. Hoje, eu observo uma tendência a centralizar a fiscalização na questão da prova. A tendência é analisar caso a caso, avaliar se o aquilo que o clube pagou era justificável. No caso do Neymar, por exemplo, ele recebia uma grande quantia como direito de imagem. Hoje, ele tem uma projeção; aos 16 anos, ele era outro. Ele não tinha a procura que tem hoje. É preciso ter razoabilidade entre aquilo que se paga como direito de imagem e a exposição que ele tem perante o público. O passo 2 é verificar se o clube utilizou o atleta em entrevistas coletivas, lançamento de produtos e a presença nas mídias internas, por exemplo.
Um dos casos mais recentes foi a autuação do técnico Cuca, do São Paulo...
O caso do Cuca foi de 2006 a 2008, quando era técnico do Botafogo, Santos e Fluminense. Ele enfrentou o mesmo problema do direito de imagem, se era transmissível ou não. Ele acabou perdendo em primeira e segunda instâncias. A multa aplicada nesse tipo de autuação, via de regra, é de 75% do valor devido. No caso de Cuca, foi aplicada uma multa de 150% do valor devido. A Receita Federal considerou que ele teria agido de má-fé ao receber parte dos vencimentos dele na empresa. A Receita argumenta que o treinador sabia que isso geraria uma redução tributária. Foi aplicada uma multa qualificada. Esse tema foi debatido em março, em última instância. O julgamento terminou empatado por 4 a 4. Quem vota pelo desempate é o presidente da turma e ele voltou pela manutenção da multa.
Esse caso foi um pouco diferente dos outros por causa da multa qualificada?
O contribuinte tem total liberdade para escolher um dos dois caminhos tributários entre as opções de 16% e 27,5%. Os dois estão previstos em lei. Por que o contribuinte tem de optar pelo caminho mais oneroso? Só porque é mais interessante para a Receita Federal arrecadar mais? Não. Não há problema algum. Em relação à aplicação de multa, eu entendo até que houve uma falha nesse julgamento. O artigo 132 do Código Tributário fala expressamente que quando houver dúvida na aplicação da multa ou penalidade sobre a infração deve prevalecer a posição do contribuinte. É como existe no Direito Penal: se houver dúvida, a decisão deve pesar em favor do réu. No Tributário, existe um artigo que diz a mesma coisa em outras palavras. Se houver dúvida, a penalidade deve ser relevada. A lei previa duas alternativas. Não vejo má-fé dele (Cuca). Ele fez uma escolha pautada em lei. A fiscalização pode concordar ou não. No meu modo de ver, a multa deveria ter ficado em 75% não em 150%.
Como comprovar a má-fé?
A partir de documentos. No Direito, tudo depende das provas. Se houve uma tentativa de adulterar documentos para criar uma situação que não era real, existiria má-fé. Eu posso até exemplificar. No caso do Neymar, quando ele estava no Santos e ia para o Barcelona, o que se identificou é havia uma série de documentos antedatados. Isso acabou sendo relevado no processo tributário. Tinha contrato de constituição de empresa de abril de 2011, mas o CNPJ da empresa constava na base de dados da Receita em novembro de 2011. Como ele assinou um contrato em abril se o número do CNPJ só foi disponibilizado meses depois, em novembro? As pessoas que o assessoravam sabiam o que estavam fazendo. Aí, eu concordo que houve má-fé. No caso do Cuca, ele não assinou nada que tentava mascarar a realidade e fez uma escolha entre duas alternativas possíveis, ainda que discutíveis, não vejo como se falar em má-fé.