Em mais um capítulo da série “Carros que mudaram a F1”, a inclusão deste carro me deu muitas dúvidas em incluir. Afinal de contas, a intenção aqui é de abordar aqueles que mudaram a F1 de forma definitiva e suas soluções estão até hoje em uso. Mas resolvi fazer esta inclusão praticamente poética pelo fato de ter sido o último suspiro tecnológico da Lotus, equipe que foi responsável por muitos dos rumos técnicos da categoria e foi tema de vários artigos desta série.
O Lotus 99T foi o carro da equipe britânica para a temporada 1987. Para este ano, o time usaria os motores Honda, após 4 temporadas usando as usinas francesas da Renault. O acordo previa duas temporadas e ainda a entrada de um piloto indicado pelos japoneses, o que levou à estreia de Satoru Nakajima, uma das estrelas do automobilismo nipônico.
Além desta novidade, o time vinha com uma grande mudança: saía o histórico apoio da John Player’s Special (vindo pela British Tobacco) e a pintura preta e dourada. Entrava agora o azul e amarelo da Camel (americana RJ Reynolds).
O acordo Lotus e Honda foi anunciado no final de semana do GP da Alemanha de 1986 (final de julho) e Gerard Ducarrouge, projetista do time, baseou o trabalho em cima do 98T, que mostrava um bom desempenho, especialmente com um modelo especial de classificação, com o qual Senna tirava desempenho total. Em corrida, os Renault tinham que ter o consumo controlado e acabavam por ter sua eficiência bem questionada.
A Honda queria trazer algumas mudanças para o seu V6, principalmente com um centro de gravidade mais baixo, com alterações no bloco e no virabrequim. Mas como a Lotus já havia começado a trabalhar no projeto do 99T com os dados dos motores de 1986, disse que não gostariam de alterações no motor. Dessa forma, os japoneses fizeram uma divisão salomônica: a Lotus teria a versão 166-E, usado em 1986, adaptado às regras de limitação de pressão de turbo (4 bar) e a Williams teria o 167-E, uma evolução com mais rendimento e melhor consumo.
O Lotus 99T foi apresentado em Londres em 3 de fevereiro de 1987 e com suspensões convencionais. Historicamente, a Lotus acabava por não ter boas soluções neste campo e viu a oportunidade de colocar um algo mais para tentar fazer a diferença: a suspensão ativa.
A suspensão ativa não era uma novidade total para a Lotus e para a F1. E como se vê em várias oportunidades, foi o aperfeiçoamento de uma ideia. Para chegar à versão de corrida, temos que ir mais atrás...
Mesmo antes da criação do automóvel, a preocupação com a suspensão já existia nas carruagens. O conforto era um ponto, mas o desempenho era mais importante. Quando o automóvel veio, o desenvolvimento foi bem acelerado e a base técnica deste projeto de suspensão ativa veio da francesa Citroen.
Um dos objetivos da suspensão é procurar manter a altura do carro ao solo o mais constante possível. Até hoje, temos o uso de molas, barras e amortecedores para fazer este serviço. Só que a Citroen, através do engenheiro Paul Magés, teve inspiração no sistema nos sistemas de trem de pouso de aviões e trouxe a suspensão hidropneumática.
Basicamente, ao invés de molas e amortecedores, o sistema usava um sistema pressurizado, com uma esfera em cada roda e ia trabalhando a variação de altura com uso de ar e gás. Desta forma, o sistema ia se alto regulando, embora o motorista pudesse regular a altura internamente. Era possível, por exemplo, trocar os pneus em uma garagem sem o uso de macaco. A inovação veio inicialmente no Traction Avant em 1954 e posteriormente no Citroen DS, em 1955.
Posteriormente, o sistema foi utilizado por vários fabricantes e em diversas aplicações, indo até mesmo em tanques de guerra. Mas a inspiração da Lotus para a suspensão ativa veio de simuladores...
No final da década de 70/início de 80, o efeito solo tinha tomado conta da F1 e a Lotus havia sido superada pela ideia trazida por ela mesma. Dentro do conceito, o principal objetivo é tentar manter o carro em altura mais constante possível para poder aproveitar ao máximo os túneis para gerar pressão (a questão segue presente até hoje). Na época, as equipes deixavam os carros com suspensões muito duras para oscilarem o mínimo possível.
O problema disso é que a pilotagem ficava terrível por conta da dificuldade do carro fazer curvas e ainda exigia estruturas cada vez mais reforçadas para aguentar a força aerodinâmica gerada (aqui foi o grande problema do Fittipaldi F6, por exemplo). Com a limitação de altura em 6cm em 1981, a suspensão hidropneumática apareceu, mas com um uso limitado: o carro subia na altura nos boxes e voltava ao chão quando na pista...
Nesta busca de algo diferente, Peter Wright, engenheiro da Lotus, foi até a base aérea de Cranfield (Inglaterra) para buscar colaboração para soluções técnicas em relação ao uso de fibra de carbono em chassis. Ali, Wright viu um simulador de vôo que chamou a atenção: basicamente, era o cockpit de um caça montado sob amortecedores ligados a computadores para tentar simular todas as situações que um piloto passava.
Logo, veio o pensamento: se um sistema hidráulico consegue simular um vôo de caça, conseguiria aguentar as necessidades de um F1?
Wright se juntou com alguns técnicos da Lotus para trabalhar em um primeiro protótipo, com a ajuda do pessoal de Cranfield. Em seis semanas, um primeiro sistema foi montado em um Lotus Spirit. Funcionou. E Colin Chapman deu o sinal verde para o desenvolvimento para competição. Isso aconteceu em meados de 1982.
Um segundo protótipo, já totalmente hidráulico e controlado por computador, foi instalado no modelo 92 e estava pronto para testes em pista quando veio o anúncio da morte de Colin Chapman. Mesmo com as incertezas naquele momento, quando o time quase fechou as portas, Nigel Mansell andou no Brasil e Long Beach com aquele sistema instalado no modelo 92, ainda com o Ford Cosworth aspirado. O carro era pesado, cheio de problemas, mas provou que funcionava e terminou duas provas. Havia potencial, mas naquele momento, a Lotus tinha preocupações maiores...
Após estas duas provas, o sistema seguiu sendo desenvolvido e diante das dificuldades enfrentadas ao longo dos anos, a Lotus considerou usá-lo novamente em competição. Antes de tudo, este era um projeto da área de engenharia da marca e seria custeado pela área de competições. Peter Wright seguia à frente e era o responsável por escrever os programas que faziam a suspensão funcionar.
Em 1983, a Ligier chegou a usar uma suspensão baseada na do Citroen. Embora a ideia fosse válida, na prática trouxe uma série de problemas e, pela primeira vez, o time francês passou em branco na F1.
Sim, esta era a grande faceta do sistema ativo: era fazer com que o carro fosse como um animal, se movimentando de forma a absorver as imperfeições do terreno, mas se antecipando e não reagindo a elas, como é o habitual. Um computador simplesmente faria o serviço e o carro teria o máximo de estabilidade em relação ao solo, gerando o máximo de apoio aerodinâmico possível.
Em 1986, se julgava que poderia haver espaço para que o sistema pudesse voltar a ser usado em competição. A vinda do motor Honda seria uma oportunidade para usar. Desta forma, o 99T foi pensado para usar a suspensão ativa desde o início.
O sistema pensado pela equipe de Wright renunciava aos amortecedores e era um festival de válvulas hidráulicas, controladas por um computador montado atrás do piloto de acordo com um programa escrito pelos engenheiros. Para fazer funcionar, uma bomba foi instalada no motor Honda. No final, a ativa tirava cerca de 15 cv do motor e um acréscimo de 15 kg no carro (mesmo chegando ao peso mínimo de então: 540kg).
Os testes iniciais do 99T foram em Paul Ricard. A Lotus preparou as suspensões tradicionais como uma reserva caso o sistema ativo não desse certo. Mas logo Senna percebeu as potencialidades do projeto e decidiu que seria com ele. Alguns especialistas dizem que, se não fosse o sistema ativo, o carro teria um desempenho muito pior...
Para ajudar no desenvolvimento e ser companheiro do brasileiro, veio Satoru Nakajima. Astro do automobilismo japonês e piloto de testes da Honda, o piloto veio quebrar um hiato de 10 anos sem nipônicos na categoria e atender aos anseios da montadora de ter um piloto local em um dos carros empurrados por seus motores.
Logo nos primeiros testes ficou claro que a Lotus teria muito a fazer para ser competitiva, mesmo com a robustez. O problema principal era tentar entender a montanha de dados gerada pelo sistema para acertá-lo. O carro era um festival de sensores: tinham os da suspensão e os da Honda. Interferências eram constantes...
Neste sentido, Senna encarou que seria um ano difícil, com um carro que não seria competitivo e foi desenvolvendo a paciência. No quadro geral, percebeu que sua chance seria nos circuitos de rua. Embora tenha tido uma pole position em Imola, a possibilidade seria onde havia muita ondulação e dependia do talento do piloto.
E assim foi: Senna conseguiu duas vitórias justamente em circuitos de rua. Contou com a sorte, mas soube aproveitar as oportunidades: Monaco, onde obteve a primeira de seus seis triunfos no Principado, e Detroit, com direito a não parar nos boxes para trocar pneus, se aproveitando do bom desempenho do sistema ativo.
Senna chegou a ser um dos postulantes ao título e quase venceu em Monza, quando se atrapalhou ao tentar dar uma volta na Ligier de Piercarlo Ghinzani e em uma estratégia de não parar para troca de pneus. Seria além da promessa feita a Soichiro Honda no início da temporada, quando falou em duas vitórias em circuitos de rua.
Nakajima teve uma curva de aprendizado um tanto atrapalhada. O fato de ser o piloto escolhido para levar a câmera no carro para mostrar sua pilotagem acabou mostrando várias falhas e acidentes, o que na época causou uma certa perseguição pelas transmissões da categoria, Brasil incluso.
Embora tecnicamente complicado, o sistema só deu problemas sérios em Hockenheim, onde Nakajima abandonou por problemas e Senna teve um vazamento pneumático, terminando a prova se arrastando. Fora isso, o sistema mostrou que ajudava na performance reduzindo o consumo de pneus e aumentando a eficiência aerodinâmica, especialmente nas curvas. Mas a complexidade para entender o funcionamento acabava por prejudicar o ganho de performance. No video a seguir, Peter Wright, o "pai" do projeto explica o funcionamento e se pode notar como era feito o acompanhamento do funcionamento e a programação do sistema
Não que esta não tenha sido negligenciada. Gerard Ducarrouge introduziu uma nova carroceria na segunda parte da temporada para reduzir o arrasto e o time investiu em testes para melhorar o desempenho em pistas de alta velocidade. Mas o ganho não foi tão grande. Mesmo assim, Senna e Lotus terminaram o campeonato em 3º lugar entre os pilotos e Construtores.
Para 1988, a equipe trouxe Nelson Piquet e, para certa surpresa, resolveu deixar o sistema ativo de lado. Tanto que Piquet só andou no 99T uma única vez, em testes de pneus no Estoril em dezembro de 1987. Fora isso, somente em algumas imagens publicitárias. Oficialmente, se alegou que o desenvolvimento do sistema estaria “roubando” partes do orçamento, já que este era um projeto da área de engenharia.
Neste mesmo ano, a Williams também apresentou seu sistema ativo, com Piquet vencendo em Monza. Isso fez com que todas as equipes começassem a querer desenvolver um sistema ativo para chamar de seu. Mas só foi dar as caras mesmo em 1992 com a Williams no FW14B “de outro planeta” e.. a própria Lotus, que seguiu na pesquisa e trouxe um sistema mais simplificado para o seu 107, que foi considerado um dos melhores carros daquele ano.
Em 1993, a coisa se espalhou e os times de ponta tinham um sistema ativo para chamar de seu. A Footwork comprou o sistema da McLaren, enquanto times como Larrousse e Ligier testaram. A Minardi foi para um caminho diferente, com um sistema hidráulico que fazia às vezes do sistema eletrônico e que anos depois foi parar na Mercedes de 2016.
Mas naquele ano, acertaram o fim das ajudas eletrônicas aos pilotos e a suspensão ativa foi inclusa. Volta e meia se fala em um possível retorno do sistema. A última vez foi na discussão do regulamento de 2026, como um equipamento padrão. Mas não passou do terreno das discussões iniciais.
Todo caso, podemos dizer que o Lotus 99T foi o último grito de uma gigante do automobilismo e marcou o início da decadência do time, marcando com o canto final em 1994...