Agora é oficial: Sir Lewis Carl Davidson Hamilton é um dos nossos. O britânico recebeu em mãos, na Câmara dos Deputados, em Brasília, o título de Cidadão Honorário do Brasil. Hamilton sempre expressou um carinho especial pelo Brasil, mas foi sua vitória épica em Interlagos, em 2021, que selou de forma definitiva a ligação entre piloto e país.
A construção da relação entre Lewis Hamilton e o público brasileiro, se fosse parte de uma obra literária, teatral ou cinematográfica, poderia ser definida como um arco de redenção dos mais interessantes, de “vilão” a herói.
Mesmo sempre se declarando um fã de Ayrton Senna, Hamilton não contava com a torcida do público pelo simples motivo de ser um dos principais adversários de um piloto brasileiro: Felipe Massa, então na Ferrari. O auge desse antagonismo se deu no GP Brasil de 2008, quando Hamilton conquistou o título sobre Massa na última curva do campeonato, em solo brasileiro. Para o público local, ficou o trauma de uma das maiores decepções esportivas da história do país. E o “vilão” que impedira o carnaval fora de época naquele 2 de novembro de 2008 era Lewis Hamilton.
O tempo foi passando, Massa já não fazia mais parte da lista de rivais diretos de Hamilton, os pilotos brasileiros rarearam na F1 e o britânico, pouco a pouco, foi construindo uma relação amistosa com o Brasil - não que tenha havido alguma animosidade de sua parte em algum momento, registre-se. Seu capacete, que tinha cores e formas inspiradas nos de Senna desde os tempos de kart, foi mudando de design para se tornar mais Hamilton e menos Senna. Mas não menos Brasil. O designer responsável pelas artes era (e ainda é) o brasileiro Raí Caldato. A imagem do Cristo Redentor foi carregada por anos na parte traseira do casco – e não só em corridas no Brasil.
A primeira vitória em solo brasileiro demorou, chegando apenas na décima tentativa, em 2016, quando o clima entre piloto e torcida já era bastante positivo. Outra vitória em 2018, quando o britânico já se consolidava como um ídolo esportivo no Brasil. Até que veio 2021. E cabe uma breve contextualização para dimensionar tudo que estava posto à mesa naquela ocasião já histórica, apesar de ainda próxima sob uma ótica temporal.
A F1 voltava ao solo brasileiro depois de dois anos em razão da pandemia de covid, que assolou o Brasil com terrível vigor. Na Fórmula 1, o que se via era um dos campeonatos mais acirrados e tensos de todos os tempos, com Hamilton e Max Verstappen tendo se tocado em pista e trocado farpas fora delas por várias vezes. Hamilton, que corria com um carro preto em referência à sua luta contra o racismo, vinha sendo alvo de sonoras e constantes vaias, especialmente em autódromos tomados pela torcida de Verstappen na Europa.
Quando chegou a São Paulo, Hamilton tinha a virtual obrigação de conseguir um bom resultado para se manter vivo no campeonato. E o apoio da torcida poderia fazer a diferença. O britânico se apegou mais do que nunca à imagem de Senna, chamou o público para o seu lado e deu tudo de si. Em uma das melhores atuações de sua carreira, superou uma série de punições para passar 15 carros no sábado e 9 no domingo. Venceu e convenceu.
Não bastasse o show com a corrida em ação, Hamilton transformou Interlagos em um caldeirão de emoções assim que foi dada a bandeirada final. Na volta de desaceleração, pegou uma bandeira brasileira e repetiu o gesto clássico de Senna, ao erguê-la para fora do carro. E seguiu com a bandeira no pódio e além, em um show de simpatia com o público presente.
Mais do que uma memorável vitória esportiva, o triunfo e a atitude de Hamilton foram simbólicos. Em um dos momentos mais tristes da história do Brasil, ainda carregado pelo luto por um sem-fim de vítimas da pandemia e em um tempo em que bandeira nacional havia sido tomada de assalto por um movimento contrário à diversidade, à positividade, à alegria e a tantos atributos brasileiros, coube a um atleta rompedor de barreiras, vindo de fora, nos mostrar que sim, ainda havia emoção nesse país. Ainda havia coração. Nossa bandeira ainda podia significar vitória, alegria, superação. Como fazia Senna três décadas antes.
Assim que a corrida acabou, ainda no calor da emoção, a equipe do Parabólica dimensionou a grandiosidade do feito e ressaltou o quão “brasileiro” havia se tornado Lewis Hamilton a partir daquele momento, como ficou claro nesse texto, nesse outro, nesse aqui e também nesse). Não demorou para que o mundo da política também notasse e o assunto, por mais inusitado que pudesse parecer, entrasse na pauta do dia no Congresso Nacional.
O título da temporada de 2021 não veio, mas a parte mais marcante da campanha daquele ano rendeu ao menos outro título ao britânico: o de Cidadão Honorário da República Federativa do Brasil. A cerimônia de entrega da honraria, com direito a Câmara lotada e aclamação do público brasileiro, marca a poética redenção daquele que já se viu no papel de vilão e conseguiu se colocar na posição do herói perante a audiência.
Após receber a homenagem, Hamilton foi conhecer ativistas negros brasileiros que o esperavam na Embaixada Britânica. Os escutou, apoiou suas causas e incentivou. Jornada inversa à de outro piloto brasileiro, patriota de ocasião, que insiste em riscar a própria biografia ao se fazer ser voz e rosto do obscurantismo, da truculência, do ódio e da vioência. O ex-ídolo que se cansou de ser um típico anti-herói e resolveu, conscientemente, dar uma guinada em seu papel e ser o vilão - para mantermos a analogia teatral.
Hamilton, é claro, não conhece a fundo o Brasil e suas complexidades mil. Mas, talvez de forma inconsciente, aquele que “não vem ao Brasil nem para passar férias” fez mais pela nossa bandeira com um simples gesto em um evento esportivo do que aqueles que se dizem patriotas fizeram nos últimos anos. Em um dia que já entrou para história, um inglês nos lembrou que o verde e amarelo também podem significar superação, emoção e diversidade. E, só por isso, já é um grande brasileiro.