Uma onda de desinformação e transfobia inundou as redes sociais na manhã desta quinta-feira, depois que a boxeadora Angela Carini desistiu da luta contra a argelina Imane Khelif aos 46 segundos do primeiro round, válida pela primeira rodada da categoria até 66 kg do boxe feminino na Olimpíada de Paris.
Vários boatos surgiram desde então. Por meio de duas mentiras simultâneas, perfis de extrema direita começaram a espalhar que a italiana teria abandonado o combate por causa da orientação sexual de sua adversária, que seria, de acordo com essas versões, uma mulher transgênero.
Entretanto, Khelif não é trans. Inclusive, em seu país, a Argélia, os direitos LGBTQIA+ praticamente inexistem e as cirurgias para mudança de sexo são proibidas por lei. Ela se identifica, na verdade, como uma mulher intersexual. Nasceu com os dois sexos biológicos e foi criada como menina.
Apesar de ter níveis de testosterona maiores que a média de mulheres cisgênero, não há qualquer indício de que Imane Khelif tenha vantagem sobre outras adversárias. Em sua estreia em Mundiais de boxe, em 2018, ela caiu na primeira rodada, assim como na Olimpíada passada, em Tóquio, quando perdeu para a irlandesa Kellie Harrington, que derrotou a brasileira Bia Ferreira na final e ficou com o ouro.
Desconstruindo de imediato a versão mentirosa que circulou pelas redes sociais, a própria Angela Carini explicou que desistiu da luta por ter tido dificuldades de respirar após Khelif acertar seu nariz duas vezes, e não por suposto protesto sobre a orientação sexual da adversária. “Entrei no ringue e tentei lutar. Eu queria vencer. Recebi dois golpes no nariz e não conseguia respirar mais, estava doendo muito”, justificou a italiana.
Os boatos se iniciaram antes mesmo da luta. Na véspera da estreia de Carini, membros do governo e políticos de extrema direita da Itália investiram pesado na narrativa ideológica. “É muito preocupante saber que, durante os Jogos Olímpicos de Paris, duas pessoas trans foram admitidas nas competições de boxe feminino, homens que se identificam como mulheres”, declarou Eugenia Roccella, ministra da Família e Igualdade.
Porém, ao contrário da afirmação, não há nenhuma mulher trans competindo nesta edição da Olimpíada. Além de Imane Khelif, a taiwanesa Lin Yu-ting, outra mulher intersex com nível de testosterona mais alto, também recebeu autorização do Comitê Olímpico Internacional (COI) para competir no boxe feminino. Segundo resolução de 2021 da entidade, “até que as evidências determinem o contrário, os atletas não devem ser considerados como tendo uma vantagem competitiva injusta ou desproporcional devido às suas variações de sexo”.
Ou seja, Imane Khelif está dentro das regras e venceu de forma limpa, sem violar os princípios olímpicos. O intuito de quem se aproveita da situação para destilar transfobia e preconceito não é a defesa das mulheres cis, muito menos da integridade do esporte, mas sim instrumentalizar a Olimpíada em um circo ideológico discriminatório, como aconteceu na abertura dos Jogos.
Há um debate científico em curso sobre como garantir condições de igualdade de disputa para mulheres trans ou intersex com anomalias genéticas e fisiológicas em categorias femininas, sem prejuízo às atletas cis. Mas isso não pode servir de muleta para ataques transfóbicos como os motivados pela desistência da lutadora italiana que jamais aderiu à baixaria do ringue político.