Brigas e atos de violência que se espalham pelo Rio de Janeiro entre torcedores de Fluminense e Boca Juniors, às vésperas da decisão da Libertadores, não podem ser dissociados de uma aberração inspirada nos torneios europeus e imposta pela Conmebol à revelia das condições socioeconômicas e da cultura de arquibancada da América do Sul: a final com sede única.
Quando decidiu que a final da Copa Libertadores 2018 entre Boca Juniors e River Plate seria disputada em Madri, por causa dos distúrbios ocorridos na segunda partida em Buenos Aires, a Conmebol já havia anunciado meses antes que o desfecho de suas competições continentais passaria a ser disputado em jogo único e campo neutro.
Sob a justificativa de atrair mais receitas e patrocinadores, o presidente Alejandro Domínguez discursou sobre estudos financeiros e análises “sociopolíticas” que teriam embasado a resolução de eliminar os jogos de ida e volta na decisão. “As finais únicas são eventos que inspirarão todos os sul-americanos a pensar grande”, disse o dirigente da confederação que foi incapaz de organizar uma final com Boca e River na América do Sul.
Ao reproduzir padrões europeus em solo sul-americano, as instituições que regem o futebol local, incluindo AFA e CBF, sempre alinhadas aos discursos mercadológicos da Conmebol, resumem o jogo somente à sua dimensão como produto e pensam pequeno.
Desprezam a cultura singular que representa a verdadeira marca da Libertadores, a atmosfera dos estádios, as peculiaridades de um continente mergulhado em profundas desigualdades sociais, extensões territoriais que inviabilizam deslocamentos de curto prazo e gargalos na logística de transportes. Mas o maior desprezo, consequentemente, é pela paixão do torcedor.
Excluídos do espetáculo, seja pelo preço proibitivo dos ingressos – os mais baratos para a final entre Boca e Fluminense, no Maracanã, custavam 260 reais – ou pela impossibilidade de bancar pacotes de viagem, torcedores são obrigados a fazer loucuras como os argentinos, que acampam na praia de Copacabana, ou os do Fortaleza que cruzaram 5.000 quilômetros de ônibus para assistir ao time na final da Sul-Americana, também realizada em jogo único.
O evento padrão Conmebol representa, por si só, uma violência contra o torcedor e, em vez de evitar confrontos de torcidas, apenas contribui para acirrá-los. Em 2021, rubro-negros e palmeirenses se enfrentaram pelas ruas de Montevidéu antes do duelo entre Flamengo e Palmeiras. No ano seguinte, torcedores sofreram com a falta de segurança em Guayaquil, que vivia uma onda de violência e convulsão social.
Cenário semelhante ao vivenciado pelo Rio de Janeiro, incapaz de conter a guerra entre traficantes e milícias, que incendiaram 35 ônibus em um único dia no fim de outubro e promovem chacinas pela cidade, como a que assassinou três médicos na Barra da Tijuca. É natural que, nessas circunstâncias, o aparato de segurança tenha dificuldades de prevenir atos violentos em um evento que promova o deslocamento de enorme contingente de torcedores da Argentina.
Não significa dizer que, em caso de jogos de ida e volta, um em Buenos Aires e outro no Rio de Janeiro, a final da Libertadores estaria blindada da violência. Todavia, além de proporcionar a oportunidade de mais torcedores apoiarem do estádio suas respectivas equipes, as duas partidas dissipariam a demanda de torcedores visitantes, já que a carga de ingressos é igualmente dividida pelos clubes na final única.
Neste fim de semana, não vai faltar dirigente para alardear o sucesso econômico do torneio, que distribui quase 100 milhões de reais para o campeão e enche os cofres da Conmebol com maior fatia de arrecadação a partir da final única. Seus cartolas dizem que a decisão da Libertadores deixou de ser uma guerra para se transformar em festa, mas não são exatamente cenas de confraternização que as sedes têm presenciado nos últimos anos. Pelo contrário, cada vez mais os atos de barbárie ganham holofotes, como os ocorridos nas areias de Copacabana na quinta-feira.
O futebol sul-americano assinou sua sentença de morte quando decidiu converter torcedores em clientes, replicando fórmulas importadas da Europa sem levar em consideração as singularidades que sempre distinguiram a cultura de arquibancada local. Um golpe econômico em que os principais lesados são os próprios “consumidores”.