Catar ainda é um canteiro de obras a 160 dias do início da Copa

País se prepara para receber em novembro e dezembro o maior evento esportivo de sua história

14 jun 2022 - 10h10
(atualizado às 10h41)

A apenas 23 semanas ou 160 dias do pontapé inicial da Copa do Mundo, marcado para 21 de novembro, ainda resta um bocado de obras a completar para que o Catar, enfim, esteja pronto para organizar o maior evento esportivo de sua história. Ainda proliferam operários e máquinas por todos os cantos da cidade.

Detalhe: muitas delas andam a passos lentos, como acontece com a reurbanização das imediações do Souq Waqif, um dos principais mercados do centro da cidade. O caminho do hotel nesta região até uma estação de metrô, que deveria levar apenas cinco minutos, sem sustos, ainda é um percurso repleto de buracos, entulho, barreiras de proteção, em que equipes trabalham em ritmo acelerado neste ponto, mesmo até tarde da madrugada. E esta situação se repete em vários outros pontos de Doha e seus arredores.

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Apesar da visível correria para deixar tudo pronto até novembro, quando começará a Copa do Mundo, e as delegações dos países participantes e 1,6 milhão de turistas começarão a desembarcar em Doha, as autoridades catarianas evitam o alarmismo. "Estamos trabalhando duro e preparados para organizar uma Copa do Mundo inesquecível e receber, de braços abertos, milhares de visitantes", diz Hassan Al-Thawadi, secretário-geral do Comitê Supremo para Entrega e Legado.

Não se trata de um relato exclusivamente do Catar no que diz respeito à organização de uma Copa. Na Rússia, em 2018, e no Brasil, quatro anos antes, em 2014, os empreiteiros do Mundial também atrasaram parte das obras combinadas. No Brasil, teve trem que ligaria o centro da cidade de São Paulo ao Aerorporto Internacional de Guarulhos que só ficou pronto anos depois de a Alemanha ter festejado o título diante da Argentina. Também na África do Sul, em 2010, as imediações do principal estádio daquele Copa permaneceram na terra batida. Ainda no Brasil, dos doze estádios que receberam jogos, apenas dois tiveram os prazos cumpridos, o Castelão, em Fortaleza, e Mineirão, em Belo Horizonte. O estádio do Corinthians, em Itaquera, por exemplo, foi concluído em maio, um mês antes de a bola rolar.

SUSTOS E CONTRATEMPOS

No mundo real, o fato é que os preparativos para organizar a primeira Copa em um país árabe formam um enredo recheado com surpresas - e sustos. Em dezembro de 2010, quando, surpreendentemente, o Catar venceu a concorrência dos Estados Unidos, Austrália, Japão e Coreia do Sul para organizar a disputa da Fifa, o plano era de que o Catar colocaria doze estádios à disposição do evento - três reformados, nove novos em folha - , além de um pacote de obras de infraestrutura orçado em US$ 200 bilhões. Mas estes projetos ambiciosos começaram a balançar em maio de 2011, quando vazou um e-mail do então secretário-geral da Fifa, o suíço Jérôme Valcke, ao presidente da Concacaf, a federação continental que os países da América do Norte e Central e do Caribe: dizia que "o Catar havia comprado a Copa do Mundo de 2022."

FIFA fecha a segunda fase da venda de ingressos da Copa do Mundo (Foto: GABRIEL BOUYS / AFP)
FIFA fecha a segunda fase da venda de ingressos da Copa do Mundo (Foto: GABRIEL BOUYS / AFP)
Foto: Lance!

Foi o estopim para uma investigação que afastou os dois dirigentes, arruinou a carreira do então presidente da Fifa, o então suíço Joseph Blatter, e colocou na prisão catorze dirigentes de várias confederações, entre eles José Maria Marin, ex-presidente da CBF. Tudo isso, claro, causou contratempos na organização.

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A TRAGÉDIA NOS CANTEIROS

Mais notícias ruins viriam, meses depois, em 2013, quando uma outra investigação feita pela Confederação Sindical Internacional - ITUC (na sigla em inglês) - denunciou as condições de trabalho de operários estrangeiros. Eram horrorosas. Começava pelas jornadas extenuantes, com duração entre 12 e 14 horas, mesmo sob temperaturas acima dos 45°C. Seguia com as condições insalubres dos alojamentos, com até doze operários compartilhando cômodos imundos e mal ventilados. Mencionava desrespeito a direitos humanos básicos, como a retenção de passaportes e documentos, para impedir mudanças de emprego. Denunciava o pagamento da jornada de trabalho por valores irrisórios (cerca a R$ 6 a hora), atrasos e até calote nos salários, por parte de empreiteiros. Apontava o dedo para a falta de segurança.

O resultado disso tudo? Uma carnificina nos canteiros de obras da Copa de 2022. Segundo reportagem publicada pelo Guardian, em fevereiro do ano passado, em uma década, teriam morrido 6.751 operários envolvidos nas obras. Segundo a Organização Internacional do Trabalho, uma agência da ONU que tem um escritório em Doha, só no ano passado, houve 38.000 acidentes de trabalho, 500 deles classificados como graves.

"Muitos destes homens eram, aparentemente, saudáveis, passaram nos testes para trabalhar no Catar e, no entanto, morreram jovens e seu atestado de óbito apenas indica causas naturais, parada cardíaca ou insuficiência respiratória", disse May Romanos, pesquisadora da ONG Anistia Internacional, para região do Golfo Pérsico. Apesar disso, ela reconhece que hoje em dia a situação dos direitos trabalhistas é muito melhor do que era há doze anos.

Um dos principais avanços foi o fim da kafala ("patrocínio ou garantia" em árabe), um sistema de relações trabalhistas muito comum nos países da região do Golfo Pérsico, segundo o qual um estrangeiro não pode mudar de trabalho ou ir embora do país sem a permissão de seus empregadores. "A abolição da kafala, a instituição de um salário mínimo (equivalente a US$ 275) e a introdução de normas de proteção de saúde mostram que o Catar está indo na direção certa: é preciso reconhecer que há um avanço de leis trabalhistas neste país", disse Gianni Infantino, presidente da Fifa, durante seu discurso no Congresso da entidade, em Doha, no início de maio.

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A COPA ENCOLHEU

Outro contratempo enfrentado pelas autoridades do Catar foi enxugar os custos do evento, na marra. Já às voltas para bancar cerca de US$ 500 milhões por semana em projetos para organizar o Mundial, em 2014, o comitê organizador decidiu reduzir o tamanho do evento e acomodá-lo em apenas oito arenas. Obras prioritárias, como o novo sistema de metrô, com três linhas, que interligará dez dos estádios e o aeroporto, foram concluídos e funcionam muito bem. Mas ficaram pelo caminho o arrojado trem de alta velocidade (350 km/h) que ligaria o país ao Bahrein e as ligações ferroviárias a 200 km/h com a Arábia Saudita.

É que em 2017, o governo do Catar sofreu boicote político e econômico por parte da Arábia Saudita, Bahrein, Emirados Árabes, e Egito - que o acusaram de apoiar o extremismo e fomentar laços com o Irã. Além de cancelamento de projetos, o conflito diplomático obrigou as autoridades catarianas a buscarem fornecedores alternativos fora dos países envolvidos na disputa em andamento.

Quando esta crise com os vizinhos ainda não havia sido solucionada, dias depois de Doha sediar o Campeonato Mundial de Clubes da Fifa, em 2019, em que o Liverpool, da Inglaterra, venceu o Flamengo na final, veio a pandemia da covid-19, que causou um novo solavanco nos cronogramas das obras. Até hoje o Catar é um dos países com medidas mais rigorosas para prevenir o contágio. Nenhum estrangeiro entra no país sem fazer quarentena se não estiver vacinado e não exibir o resultado negativo de um teste do tipo PCR feito com até 48 horas antes de sua chegada. Ao chegar no país, é obrigatório instalar um aplicativo no telefone celular, o Ehteraz. Sem mostrá-lo não se entra em lojas, metrô ou ônibus. Com receio de uma nova explosão nos contágios bem no meio da Copa do Mundo e escaldadas por tantos sustos, as autoridades de Saúde do Catar preferem jogar de olho na segurança.

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