Uma das seleções mais aclamadas do planeta e finalista da Copa do Mundo de 2022, a França vai em busca do segundo campeonato seguindo, o terceiro em sua história. Os Bleus são uma equipe marcada pela presença de jogadores das mais diversas origens, espelhando um pouco a sociedade francesa atual. No entanto, em vez de isso ser um motivo de orgulho, o tema cada vez mais causa divisão no país. O LANCE! explica o porquê da conturbada história extracampo do futebol francês, que novamente contextualiza a epopeia pelo tri.
Até os anos 80, a seleção nacional francesa era majoritariamente composta por atletas brancos. Nesse período, a França venceu seu primeiro título de expressão: a Eurocopa de 1984, conquistada sob a batuta de Michel Platini. A partir da década de 1990, a equipe passou a ter maior presença de atletas de origem africana e árabe (majoritariamente das colônias francesas), como Zidane, Desailly e Thuram, que se "juntaram" aos atletas de origem francesa.
O fato deixava camadas mais conservadoras da sociedade local intrigadas. Uma das personalidades que davam bastante amplificação a esse discurso era o líder de extrema-direita e ultranacionalista Jean Marie Le Pen, que chegou a dar uma polêmica declaração durante a Euro de 1996.
- É uma seleção artificial porque juntam jogadores estrangeiros e batizam como seleção francesa. Vejo os outros jogadores cantando o hino com bastante fervor e os da França ou não cantam ou sequer sabem - disse Le Pen em entrevista.
As palavras do líder da Frente Nacional (partido ultranacionalista francês) não caíram bem. Capitão na época e hoje treinador da seleção, Didier Deschamps se solidarizou com os demais atletas. Dois anos depois, em 1998, a França sediou a Copa do Mundo e sagrou-se campeã mundial pela primeira vez.
As frases preconceituosas despertaram uma forte discussão sobre o racismo no país, a ponto do tema perseguir a seleção nacional como uma espécie de sombra.
PRECONCEITO DENTRO DA SELEÇÃO E BENZEMA
O ápice do racismo presente na seleção estourou em 2011, quando áudios do então treinador Laurent Blanc com alguns membros do time vazaram. Neles, discutiam-se uma limitação de jogadores negros e árabes na seleção, estabelecida por um sistema de cotas por conta da pressão de líderes políticos.
Neste momento, uma polêmica envolvendo Karim Benzema explodiu. Filho de argelinos, o jogador determinou que nunca cantaria o hino nacional, justificando que "a letra incentiva a morte aos imigrantes". Atualmente, muitos nacionalistas usam frases da Marselhesa que remetem ao sangue impuro para se referir aos imigrantes. Benzema disse também que é francês como profissional, mas que em seus costumes e vida pessoal considera-se argelino.
Em 2015, Real Madrid e Barcelona jogaram após o atentado do dia 13 de novembro em Paris. Após a execução do hino nacional francês, antes da bola rolar no Santiago Bernabéu, Benzema cuspiu no gramado. A deputada conservadora Nadine Mohanot pediu a exclusão do atacante da seleção.
No fim das contas, Benzema acabou sendo afastado da delegação francesa. O motivo extraoficial, porém, foi a polêmica de chantagem com o companheiro de equipe Valbuena, que acusou o atacante do Real Madrid de extorsão e chantagem por conta da suposta existência de um vídeo íntimo. Por conta disso, Karim não fez parte da campanha que levou a França ao título da Copa do Mundo de 2018 e do vice da Eurocopa de 2016.
UNIDADE E SEPARAÇÃO LADO A LADO
Com o título mundial em 1998, começou-se a ciar um conceito da junção das três raças da seleção francesa intitulado ''Black Blanc et Beur'' (Negro Branco e Árabe), que fazia referência às "novas" cores da bandeira francesa.
O conceito talvez seja uma das principais fontes de celebração do futebol nacional Muitos, porém, enxergam com maus olhos a presença plurirracial na equipe. Esses discursos tornam-se cada vez mais fortes a partir das derrotas, o que já gerou indignação dos atletas.
- Quando ganhamos o mérito é de todos, mas quando perdemos os negros e árabes levam a culpa - disse Liliam Thuram, zagueiro campeão do mundo e um dos mais politizados entre os futebolistas franceses.
O ex-atacante Eric Cantona também chegou a criticar tal fenômeno de bipolaridade acerca da seleção de acordo com os resultados.
- Se ganham são negros, brancos e árabes juntos, mas se perdem, são chamados de bandidos do gueto - afirmou Cantona no documentário "Les Bleus: Uma Outra História da França".
MBAPPÉ X FEDERAÇÃO: UM NOVO CAPÍTULO PARA A CRISE
Quando foi campeã mundial pela segunda vez, em 2018, a França tinha em Mbappé, Kanté e Pogba um trio de força e decisão. Os três são descendentes de africanos e costumeiramente protagonizam os debates raciais sobre o elenco. Em junho de 2022, Mbappé escancarou a crise de identidade da qual a França virou símbolo futebolístico. Em entrevista ao "L'Equipe", o presidente da Federação Francesa, Noel Le Graet, afirmou que o jogador não tinha lidado com as críticas da imprensa e decidido parar de jogar pela seleção após perder o pênalti decisivo contra a Suíça na Euro 2020.
O camisa 10 respondeu nas redes dizendo que tinha reclamado sobre o racismo sofrido e acusou o dirigente de negligenciar o assunto. Há um mês, às vésperas da viagem ao Qatar, em entrevista à revista "Sports Illustraded", Mbappé declarou que não queria jogar para pessoas que o chamavam de macaco, mas que queria seguir para mostrar a "nova França" para todos. Ele também resolveu não aparecer em campanhas publicitárias da seleção francesa, devido a uma briga com a Federação. Mbappé alegou que seus direitos de imagem não estavam sendo usados de maneira correta.