Semifinal da Copa do Mundo entre França e Marrocos envolve rivalidades afloradas fora do campo

País africano foi protetorado francês e, até os dias de hoje, tem uma relação diplomática repleta de idas e vindas com os europeus

13 dez 2022 - 22h13
(atualizado em 14/12/2022 às 10h43)
Torcedores marroquinos comemoraram vitórias em Paris (Foto: JULIEN DE ROSA / AFP)
Torcedores marroquinos comemoraram vitórias em Paris (Foto: JULIEN DE ROSA / AFP)
Foto: Lance!

Mais do que a expectativa por garantir a última vaga na final da Copa do Mundo do Qatar, o encontro entre França e Marrocos envolve uma sucessão de emoções. As duas seleções se enfrentam em meio a uma rivalidade aflorada, envolvendo um passado de protetorado e imigração.

SOB TUTELA FRANCESA

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Entre os anos de 1912 e 1956, a monarquia de Marrocos ficou sob um protetorado da França, após o estabelecimento do Tratado de Fez. Antes, o país tinha sido colônia espanhola e portuguesa. Porém, tinha zonas de influência da região francesa e do Império Alemão. Todos esses aspectos geraram tensões entre as potências da Europa.

Muito disso passa pelo contexto vivido pelos países europeus da época, com o processo de industrialização que ocorria no continente no século XIX. Neste período, o norte da África passou a ser apreciado pelo seu potencial de colonização. Quando ficou sob tutela da França, muitos colonos passaram a entrar no Marrocos e adquiriram ricas terras agrícolas. Outros passaram a administrar a exploração de minas e modernização de portos, ao mesmo tempo em que a metrópole francesa aumentava seu controle.

A influência dentro do país cresceu bastante, a ponto de se juntar à identidade local e ganhar uma certa importância dentro do país, como explica o professor de Antropologia da UFPI, Bruno Bartel.

- Para quem vive em Marrocos, a língua francesa é importante. Ela abre portas, faz com que pessoas consigam cargos de maior importância. A elite francesa e os intelectuais falam francês em bistrôs. O atual rei foi educado na França. Não deixa de ser um sentimento de neocolonialismo - afirmou ao LANCE!.

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O processo independentista do Marrocos em si foi menos sangrento que o da Argélia, por exemplo, mas a independência se dá justamente depois da separação da vizinha do estado francês que se recuperou depois da Segunda Guerra Mundial. As forças do Marrocos pediram a volta do sultão Mohammed V. Nesse contexto, em meio à insurreição argelina, a França se viu na necessidade de concordar com a independência marroquina.

Torcedores marroquinos têm conquistado os fãs de futebol na Copa do Qatar (Foto: Alberto Pizzoli/AFP)
Foto: Lance!

A COMPLEXIDADE DIPLOMÁTICA

Apesar dos dois países terem mantido laços baseados em cooperativismo, Marrocos e França passaram por turbulências nas relações diplomáticas; muito porque o país do norte africano não vê com bons olhos uma reaproximação dos franceses com a vizinha Argélia.

Além disso, o governo marroquino ficou bastante descontente com o poder central francês pelo fato da diminuição de vistos para marroquinos na França. O país africano é um dos que mais tem imigrantes erradicados em território francês.

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A questão imigratória é um fator que tem gerado muita polêmica, principalmente pela forma pela qual marroquinos são tratados na Europa. Camadas mais conservadoras da sociedade francesa não enxergam com bons olhos a presença de tantos imigrantes no país, o que é demonstrado por meio de discursos ultranacionalistas. Este fator desperta muita discórdia e põe em dúvida muitos valores.

- Os marroquinos são tratados na União Europeia como cidadãos inferiores. O discurso de integração, da "igualdade, liberdade e fraternidade", é colocado em dúvida pelos imigrantes. Isso gera uma frustração. Ao mesmo tempo, há múltiplos pertencimentos entre as pessoas que viajam para território francês - afirmou Bruno Bartel.

As tensões diplomáticas possuem reflexos em todos os lugares. Na capital francesa, Paris, ocorreram confusões entre marroquinos que vivem na França e a polícia local durante os festejos após a classificação da seleção africana contra Portugal nas quartas de final da Copa do Mundo.

No Qatar, após a classificação com vitória sobre Portugal, o goleiro Yassine Bounou optou por falar apenas em árabe, seu idioma nativo, e não em francês, como estabelecia o protocolo. O camisa 1 afirmou que não era problema dele que os jornalistas não entendessem o árabe e que tivessem de colocar o intéprete.

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Seu objetivo era dar visibilidade à língua local e valorizar a identidade marroquina, mas também, confrontar interpretações consideradas "eurocêntricas". Para Bartel, isso é parte de uma busca interna do Marrocos por valorização do que se sistematizou no país.

Marrocos eliminou Espanha e Portugal no mata-mata da Copa do Mundo (Kirill KUDRYAVTSEV / AFP)
Foto: Lance!

- Foi um recado para os outros países deixarem de ser colonialistas. Isso foi bem além do que uma questão cognitiva aos jornalistas. Houve um alerta para que os marroquinos deixem de baixar a cabeça para a língua francesa. Todos no Marrocos têm de adotar com mais frequência o árabe marroquino, que tem suas variações e uma identidade própria. A população do país ainda luta pelos direitos de que sua língua original apareça com mais ênfase nos meios de comunicação local. Em muitas emissoras, há predominância do francês, enquanto em alguns horários há destaque para o árabe marroquino. Há grupos que pedem que a língua de origem tenha uma notoriedade.

Apesar das tensões existentes no sentido diplomático, Marrocos sempre teve uma boa relação com a Europa em geral. Tanto que, apesar de ser um país majoritariamente muçulmano, o país é um dos mais abertos para ocidentalismo e mostra-se tolerante com outras religiões. Porém, nos últimos anos, também passou a olhar mais para seus vizinhos africanos.

- Há uma questão de africanidade. Além de olhar para a Europa, o Marrocos passou a olhar para as demais sociedades africanas. Marrocos retornou à União Africana depois de 33 anos (em 2017, mesmo ainda em desacordo devido à questão do Saara Ocidental). Além de um olhar de ampliações comerciais e diplomáticas, boa parte dos marroquinos acreditam na formação de uma imagem de um Islã tolerante com as demais religiosidades - disse o professor de Antropologia.

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Técnico do Marrocos, Walid Regragui montou uma equipe extremamente sólida na defesa (Kirill KUDRYAVTSEV / AFP)
Foto: Lance!

MIGRAÇÃO E ARABISMO

A seleção marroquina tem mais da metade de seus jogadores nascidos fora do país, porém, apenas dois franceses, enquanto na França, o meia Matteo Guendouzi é descendente de marroquinos.

Porém o contexto que se dá com relação ao desafio da seleção marroquina é de um forte sentimento de "arabismo", que não só envolve o povo de Marrocos, mas também uma união forte por parte da comunidade árabe. Há uma forte sensação de identidade com a religião. Tanto que, após a classificação para as semifinais, chefes de estado do Oriente Médio e do norte da África parabenizaram os Maghrebi pelo feito.

O duelo desta quarta-feira (13) certamente envolverá uma tensão a mais pelo passado colonial, mesmo não sendo tão brutal. Mas, querendo ou não, há uma complexidade de sentimentos envolvidos, em virtude do que aconteceu no período do protetorado. Um dos sentimentos é a busca por seguir em busca pelo título da Copa do Mundo.

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