O que um povo humilde e simpático de uma pequena cidade litorânea do sul do Chile, com 180 mil habitantes, teria para ensinar a uma poderosa nação boleira de 200 milhões de habitantes? Pergunta estranha para uma reportagem de futebol, em tempos de Copa América, não? Pois saiba que Talcahuano, vizinha a Concepción, onde o Brasil enfrenta o Paraguai neste sábado, pelas quartas de final da competição continental, pode ser, sim, um exemplo para uma Seleção Brasileira devastada pela desconfiança após uma tragédia sem precedentes.
Afinal, se a nação brasileira jamais vai esquecer o fatídico dia 8 de julho de 2014, os moradores de Talcahuano nunca apagarão da memória o dia 27 de fevereiro de 2010. Metaforicamente, e, ainda mais, guardadas as devidas proporções, ambos os povos viveram episódios de dor de quem esfrega os olhos e não acredita no que está vivendo. Com a diferença de que os chilenos praticamente já superaram o devastador terremoto e tsunamis que atingiram a costa chilena. Já o Brasil, longe de passos largos, ainda briga contra a desconfiança depois do colapso do 7 a 1 na semifinal da Copa do Mundo diante da Alemanha.
“Hoje estamos com a cidade 90% reconstruída”, afirma o prefeito de Talcahuano, Gastón Saavedra, em entrevista ao Terra, orgulhoso do fato da cidade ter se reerguido após a fúria do mar ter destruído cinco mil casas, avariado seriamente outras 25 mil, além de ter deixado dezenas de mortos e locações importantes da cidade completamente destruídas – por exemplo, o porto local, a sede da prefeitura, o teatro Dante e a praça das Armas, onde se acumularam vários contêineres trazidos a mais de 500 metros de distância pelo maremoto.
“Eu nunca tinha pensado nisso, mas é verdade. Se nós chilenos não vamos esquecer aquela noite, vocês tampouco vão apagar da memória aquela derrota para a Alemanha”, reconhece Saavedra. “Aliás, o que aconteceu com o futebol de vocês? Que time é esse que vocês trouxeram para cá? Dunga não é treinador de futebol, deveria treinar luta livre. Onde está o jogo bonito”, questiona ainda o prefeito-boleiro. “Nunca vi um time do Brasil tão ruim”, repete.
As coincidências relativa aos dois episódios, relembrando mais uma vez, que tudo trata-se de uma metáfora, encontram um outro denominador comum. Se em 2010 muito se falou nas investigações posteriores que as autoridades chilenas foram omissas na emissão de alertas de tsunami após constatado o forte tremor de 8.5 graus na escala Richter, por que não comparar ao momento atual de uma equipe que não tem sequer o presidente da CBF os acompanhando no primeiro torneio importante após o “Mireirazo”?
Se Marco Polo Del Nero é questionado e investigado por escândalos envolvendo a prisão de sete dirigentes na sede da Fifa, em Zurique, a Oficina Nacional de Emergência do Ministério do Interior (Onemi) do Chile é até hoje indagada, e acionada na Justiça, por moradores que perderam os pertences de uma vida toda, e poderiam ter a chance de ainda contar com a presença de parentes de quem nunca mais poderão desfrutar da companhia.
Um trabalho de omissão de ambas as partes que esbarrou na burocracia – no caso político, a incerteza de apuração de dados do terremoto, no futebol, a falta de fiscalização na atuação de empresários que impedem craques de despontarem e serem úteis, de fato, ao ex-time do joga bonito.
O que falar, então, da ausência de duas pessoas que teriam tudo para serem potagonistas atuando in loco? “O irônico daquele dia é que a presidenta Michelle Bachelet tinha um visita programada para cá, justamente naquele dia. Claro que tudo mudou depois do terremoto na madrugada”, relembra Saavedra. Sem ter condições de visitar os vilarejos próximos, como Santa Marta, devastado pelas ondas gigantes, Bachelet esteve como um Neymar no 7 a 1. Vendo tudo de longe, sofrendo, sem nada que pudesse fazer de imediato.
Levanta, sacode a poeira...
Se nós brasileiros lembremos com detalhes traumáticos da enxurrada de gols sofrida pela Alemahha e que Klose superou Ronaldo como o maior artilheiro da história das Copas com 16 gols, ou então que David Luiz teve uma das piores atuações de um zagueiro numa semifinal de Mundial, o pescador Fidel Figueroa, 42, também não esquece daquela madrugada em tinha a certeza das ondas.
Esfregando as mãos calejadas, sem tirar o sorriso no rosto de quem sabe que “essa é minha primeira entrevista na vida para um brasileiro”, ele recorda que naquela madrugada (o epicentro foi no oceano Pacífico, às 3h40), depois dos tremores “que já destruíram um monte de casas e deixou todo mundo que nem louco sem saber por onde andava, sem luz”, ele não teve dúvida.
“Peguei todo mundo que eu conhecia e subi o cerro”, conta. O cerro que ele diz é da vila de pescadores de Caleta Tumbes, vilarejo de Talcahuano que foi varrido do mapa pelas ondas. “Não tinha luz, mas a gente sabe aqui que se a terra treme, pode vir alguma coisa do mar”, diz. Ou seja, se o governo falhou nos informes, Figueroa pelo contrário. “Lembro que a gente estava sem luz, mas às vezes dava uns estalos, que iluminavam. Foi quando eu percebi que o mar recuou. Peguei na mão de quem eu podia, e subimos o cerro (morro). Muita gente se salvou assim”.
“As ondas chegaram a uns 30 metros os cientistas disseram depois. Não sei como consegui me salvar, mas se perdi minha casa, tudo, todos os meus filhos, minha mulher, todo mundo está vivo”, relembra. “Nossa união foi fundamental para a reconstrução de nossa vida. E do povo também. Todo mundo se uniu. Todo mundo deu as mãos para reconstruir Tacalhuano”.
Essa talvez seja a grande mensagem para a Seleção Brasileira, por fim. É o que acredita o hoje garçom do mercado central também reconstruído da região portuária da cidade litorânea do sul do Chile. Afonso Ruffo, 45, aponta o dedo para o ponto onde o mar chegou. “Se todos nós não tivéssemos dado as mãos”, diz, pegando no braço do repórter, efusivo, "não teríamos saído do lugar”. O trabalho braçal foi ordenado e lembra o ocorrido no tsunami do Japão.
“Gastamos toneladas de milhões de dólares aqui”, resume o prefeito Saavedra, antes de finalizar a “receita do bolo” para o fatídico 7 a 1, ao relembrar que a tubulação de água, já restabelecida, se quebrou em 1500 pedaços ao longo de 22 kms desde a fonte. “Já que você fez essa metáfora, serve essa, então. Reconstruímos a nossa tubulação. Hora de vocês fazerem o mesmo com a confiança. A comunidade participou, sem isso não teria sido possível em tão curto espaço de tempo. Talcahuano foi refeita pelos próprios moradores. Talvez seja esse o recado, que vocês brasileiros devam participar mais da formação da Seleção Brasileira. E não ficar apenas criticando”.