A Ucrânia não esperava perder por 3 a 0 para a Romênia na sua estreia da Eurocopa 2024. O placar foi surpresa até por o time ucraniano ter nomes mais conhecidos na Europa em relação ao adversário. O futebol, contudo, tem dividido a prioridade da equipe no torneio. A delegação utiliza os holofotes para apontar ataques sofridos pela Rússia na guerra que já duram dois anos no Leste do país e enaltecer as forças nacionais que tentam defender o território.
Exemplo disso foi o vídeo publicado por Andriy Shevchenko, maior ídolo do futebol no país e presidente da Associação Ucraniana de Futebol, na véspera da abertura da Eurocopa. As imagens mesclam os jogadores da seleção apontando suas cidades de origem e os cenários de destruição. Ao todo, são 13 atletas da equipe que nasceram em locais hoje ocupados pelo exército russo.
"Estamos acostumados a ouvir que futebol é separado da guerra, mas esse vídeo prova o contrário, mostrando que não há jogador, cidadão, estádio, ou criança não tocada pela guerra. Estamos na Eurocopa, graças às pessoas incríveis que estão lutando por nossa liberdade, incluindo milhares de centenas de torcedores que prefeririam estar nas arquibancadas em vez da linha de frente", escreveu Shevchenko.
Em fevereiro de 2022, quando a Rússia invadiu o país vizinho, esperava-se um conflito curto. Países ocidentais garantiram apoio para que a Ucrânia resistisse. Dois anos depois, é difícil dizer se a guerra está mais próxima do fim do que do começo. "A gente nunca pode prever nada 100% em política internacional, mas, no momento, parece improvável que a Ucrânia recobre o controle de todo o território que ela tinha antes. Eu acho bastante improvável de acontecer num futuro próximo", analisa o professor do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Flávio Lira Nascimento, que estuda política e sociedade internacional.
'Oportunidade de lembrar o mundo' e 'seleção mais forte de todos os tempos'
Na estreia, a Ucrânia foi dominada pela Romênia. Nem mesmos os talentosos Mudryk e Tsygankov conseguiram desequilibrar para a equipe. "Representar a Ucrânia neste torneio é muito importante para o nosso país, para os defensores do nosso estado. Nossos jogadores receberam muitas mensagens após a vitória contra a Islândia (pela repescagem). Mas temos de esquecer o que aconteceu antes e nos concentrar na Eurocopa, mostrar o nosso máximo. Se não mostrarmos isso, será muito difícil para nós", lamentou o técnico ucraniano, Serhiy Rebrov, após a derrota.
"Representamos um país forte, uma nação forte que luta pela sua liberdade. Agora temos que nos preparar muito a sério e mostrar uma seleção ucraniana diferente na partida contra a Eslováquia", projetou, fazendo referência à guerra.
O engajamento manifesto por Shevchenko e Rebrov também tem voz no elenco. "Para nós, a Eurocopa é uma oportunidade para lembrar ao mundo inteiro que crianças, mulheres e soldados são mortos todos os dias no nosso país. É também um incentivo", declarou ainda antes da estreia, o capitão da seleção ucraniana, Andriy Yarmolenko.
Em campo, o time também se fortalece em talentos exportados para outras ligas mais fortes. Isso levou Yarmolenko a dizer que esta é a seleção ucraniana "mais forte de todos os tempos". É com essa força que o time irá enfrentar a Eslováquia, na sexta-feira, dia 21, às 10h (horário de Brasília), na Espirt Arena, em Düsseldorf.
No campo, a Ucrânia conquistou a vaga a duras penas, sempre jogando fora do seu território, o qual boa parte está tomado pela Rússia, principalmente no Leste. Há 12 anos, o país era sede do torneio. Para o professor Lira, bons resultados no futebol podem levantar o moral do país. "Simbolicamente, seria importante para a Ucrânia, para o próprio governo do presidente Zelensky", aponta, mas ressalva: "Seria insuficiente para, de alguma maneira, causar uma reviravolta nesse momento de guerra".
Quais as perspectivas do conflito?
Até o momento é praticamente impossível prever o que resolveria a guerra, já que ambos os lados têm interesses incompatíveis. No que se refere à população comum, há maior isolamento por parte dos russos. "Mas há uma drenagem de recursos humanos, pessoas que estão na guerra", explica Lira. No país ocupado, quem vive no Oeste consegue ficar mais alheio ao conflito, ainda que sofra com seus efeitos. Um deles é perda populacional, já que muitos ucranianos (principalmente mulheres e crianças) se tornaram refugiados na Europa Central e Ocidental.
Após dois anos, um fenômeno comum a todas os confrontos bélicos já dá sinais, a "fadiga de guerra". "Boa parte do mundo perdeu o interesse. Infelizmente, não se tem mais esse debate. E isso pode também fazer com que a Rússia ganhe e terreno, porque a Ucrânia se mobiliza também na opinião pública ocidental e global", diz Lira.
Essa lembrança é, segundo o pesquisador, o que dá sentido para a participação da Ucrânia na Eurocopa ter sua singularidade: "Se a gente perde essa noção humana, a gente também não consegue inclusive apreciar o que um jogo de futebol, por exemplo, representa. A gente só consegue entender o peso disso se a gente pensar que aquele sofrimento segue acontecendo. É humano no começo ao fim".