Na crise, jogadores viram entregadores e vendem roupas

Atletas da base da pirâmide ficam sem contrato e buscam alternativas fora do futebol para obter renda durante a pandemia

8 jun 2020 - 05h12
(atualizado às 08h19)

Nos últimos dois meses, o lateral-esquerdo Carlos Antônio teve de deixar de lado a bola e se uniu à esposa na venda de roupas femininas infantis. Sem futebol, o jogador, de 22 anos, teve seu contrato rompido com o Mamoré-MG, em março, assim que a disputa do Módulo II do Campeonato Mineiro foi suspensa, e se viu obrigado a buscar uma nova fonte de renda enquanto não há perspectiva de reinício dos torneios.

Carlos Antônio ajuda a mulher na venda de roupas femininas de criança
Carlos Antônio ajuda a mulher na venda de roupas femininas de criança
Foto: Arquivo Pessoal

Carlos Antônio faz parte de um imenso grupo de jogadores de futebol que, com a suspensão dos jogos provocada pela pandemia do novo coronavírus, tiveram de improvisar para encontrar uma nova fonte de renda. Com os torneios paralisados há quase três meses, grande parte dos atletas tiveram contratos suspensos e passaram a buscar alternativas para sustentar a família. Sem a chuteira e a bola, viraram vendedores, motoristas, entregadores, monitores, entre outros serviços. Alguns dependem de amigos e familiares e recebem ajuda de clubes da várzea e entidades que realizam projetos sociais. Outros, diante da insegurança e instabilidade da modalidade, estão descontentes e cogitam se aposentar.

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Flávio Meneses tem mais de 10 anos de carreira e pode ser classificado como um "operário da bola". O lateral nunca firmou um contrato longo e muito menos milionário e acostumou-se a peregrinar por equipes de menor expressão. Sofre recorrentemente com salários atrasados, condições precárias de trabalho e é assombrado pelo desemprego. A última de suas experiências no futebol foi traumática. Ele estava no Barretos e assegura ter recebido apenas um salário em seis meses de contrato com a equipe do interior paulista. Em resposta ao Estadão, o clube garante ter efetuado os pagamentos até março. (Veja o posicionamento detalhado do Barretos mais abaixo)

Espelho da sociedade brasileira, o futebol é muito desigual no País. De acordo com um estudo da consultoria Ernst Young encomendado pela CBF sobre o impacto da econômico do futebol brasileiro, com números de 2018, 55% dos jogadores profissionais do país recebem até um salário mínimo e 33% ganham entre R$ 1 mil e R$ 5 mil. É o caso de Carlos Antônio, cujo salário no Mamoré era de R$ 2,5 mil. Seu vínculo com o clube, que iria até o final de maio, foi suspenso devido à pandemia.

O abismo social no futebol fica ainda mais evidente quando é apresentada a parcela dos que têm altos salários. De acordo com o relatório, menos de 1%, isto é, uma elite muito restrita, que joga nos grandes times brasileiros, é remunerado com mais de R$ 50 mil. Em 2018, apenas 13 atletas tiveram rendimentos acima de R$ 500 mil. E tem mais: segundo dados da CBF, apenas 8% dos atletas têm contrato longo e calendário para a temporada inteira.

Uma ajuda bem-vinda durante a pandemia pode ser o auxílio emergencial de R$ 600. No entanto, o presidente Jair Bolsonaro vetou a inclusão do benefício para atletas e profissionais do esporte e aumentou o drama da categoria. As entidades esportivas trabalham junto ao Congresso para reverter a decisão do chefe do Executivo.

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Diante dessa realidade, vários futebolistas estão se virando como podem para não ficar sem renda durante o período em que não há jogos. Boa parte deles se arrisca fora de casa, aumentando o risco de serem contagiados pela covid-19. O Estadão relata a seguir as histórias de alguns desses atletas pertencentes à base da pirâmide do futebol que tentam driblar a crise e se desdobram para sobreviver enquanto não podem voltar a jogar.

Carlos Antônio ajuda a mulher na venda de roupas infantis

Carlos Antônio, de 22 anos, é lateral-esquerdo e volante. Passou pelas categorias de base do Corinthians e da Portuguesa. O primeiro time em que jogou profissionalmente foi o Grêmio Osasco. Depois, rodou por algumas cidades. Atuou em times menores de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul até chegar neste ano ao Mamoré, equipe que disputa o Módulo II do Campeonato Mineiro, a segunda divisão estadual. "A previsão é de que o campeonato volte em agosto. Mas não sabemos o futuro, temos que ter um plano B", afirma o jogador.

Carlos recebeu seu salário de R$ 2,5 mil até março, quando o Mamoré rompeu o contrato de todos do elenco. Com isso, o jogador voltou a São Paulo, sua cidade natal, e passou a ajudar a esposa na venda de roupas femininas infantis. Ele mora com a mulher, a filha de 1 ano e 4 meses e o enteado de 8 anos.

"Minha mulher pegou uma remessa de roupa infantil, de menina, e estamos vendendo em casa para ganhar um dinheiro", conta o lateral. "A gente divulga as roupas pelas redes sociais. Os nossos amigos se interessam e, dependendo do lugar, eu até entrego".

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Carlos mesclou por um tempo o futebol profissional com o de várzea. Ganhava de R$ 200 a R$ 400 por jogo. Hoje, foi acolhido e tem recebido uma quantia mensal dos clubes da várzea pelos quais passou. O Vila Isabel, de Osasco, também contribui mensalmente com cestas básicas.

Flávio aproveitou experiência no meio e hoje é monitor de futebol

A eclosão da pandemia do novo coronavírus não foi o que mais prejudicou Flávio Meneses, de 31 anos. O que lhe afetou em cheio foi o tratamento do Barretos, sua última agremiação. Segundo o jogador, o clube do interior paulista, que disputa a Série A3 do Campeonato Paulista, pagou apenas o salário de janeiro para todo o elenco. "Cheguei em dezembro e recebi só uma vez", diz. Seu contrato, assim como de todo elenco, se encerrou em maio.

"O que fizeram com a gente foi sacanagem. Não me deram nem passagem para eu voltar para casa. Ficamos esperando, mas viraram as costas para gente", acusa. Para piorar, segundo Flávio, o Barretos não bancou moradia para os atletas e o lateral-direito e outros colegas foram despejados. Passou, então, a morar no alojamento do clube, situado no estádio da equipe.

Flávio recebeu ajuda financeira da família e conseguiu regressar a Cubatão, onde reside com a esposa e a filha de 8 anos. Sem renda fixa e enquanto não sai a decisão da ação coletiva que os atletas movem na Justiça do Trabalho contra o Barretos, o jogador virou monitor de futebol em sua cidade. Ele está apto para o trabalho pois recebeu o certificado emitido pelo Sindicato de Atletas de São Paulo e que autoriza legalmente ex-futebolistas a exercerem as funções de professor ou treinador da modalidade. Teve de furar a quarentena, mas instrui os alunos a manter o distanciamento durante as aulas, realizadas em um campo society da cidade.

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"Ganho R$ 20 por aluno a cada aula e dou as aulas pelo menos três vezes por semana. É o que está me ajudando no momento", relata o atleta, infeliz com o futebol e que, pela insegurança da profissão, pensa em aposentar as chuteiras. "Já passei por muita coisa no meio. Não sei se vou continuar".

Procurado pela reportagem, o Barretos afirmou, por meio de nota, que o planejamento para a Série A3 foi feito pelo então presidente Roberval Moraes da Silva, que pediu afastamento do cargo no início de março e que, portanto, os custos do elenco "fora da realidade" não foram estipulados pela atual gestão. Hoje, Raphael Gonçalves Dutra, que também é vereador na cidade, é o presidente em exercício.

O clube alega que "os jogadores revelaram que foram contratados por Luís Eduardo Cortillazzi (diretor de futebol) com um salário muito maior daquele que o clube pagava e que vieram iludidos que jogariam em um time da Série A2". Sobre a moradia, salienta que dividiu o elenco, "sendo uma parte alocado em um hotel da cidade e outra parte em um condomínio".

O Barretos disse não ter conhecimento da ação coletiva impetrada pelos jogadores na Justiça do Trabalho pois ainda não foi intimado. Ressalta também que perdeu patrocinadores com a chegada da pandemia, mas garante que "está buscando recursos para sanar quaisquer dívidas que possam existir".

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Jussan compra e entrega alimentos e remédio para pessoas do grupo de risco da covid-19

Em termos salariais, a vida de Jussan Maia não mudou muito com a pausa dos jogos. Isso porque ele e todo o elenco do Grêmio Atlético Sampaio (GAS) aceitaram jogar o Campeonato Roraimense sem receber. "É um projeto de 45 dias. Fechamos um acordo por um projeto porque o clube não tem estrutura financeira. Jogamos sem salário com o objetivo de ser campeão estadual, jogar a Copa do Brasil em 2021 e conseguir calendário para o time", explica o volante.

Se conquistar o Estadual, o elenco do GAS, que já foi considerado o pior time do País levando em conta o ranking da CBF, tem direito a uma parte da premiação pelo título, diz o volante de 30 anos. Quando o torneio foi paralisado em março, a equipe da cidade de Caracaraí estava invicta e na liderança geral. Ainda não há uma definição sobre a data de reinício do campeonato.

Jussan não ganhava salário no GAS, mas o clube bancava moradia e alimentação dos atletas. Com a suspensão do campeonato, o volante retornou para Manaus, sua cidade natal. Lá, mora sozinho em um pequeno imóvel situado em cima da vendinha do avô, desativada em razão da pandemia. A renda atual do jogador, que já foi cobrador de ônibus e motorista, advém de bicos. Ele é pago para fazer compras - remédio e alimentos - e entregar estes itens para pessoas que fazem parte do grupo de risco da doença e não podem sair de casa. Também teve aprovado seu auxílio emergencial de R$ 600 disponibilizado pelo governo. Esperou dias até o benefício ser liberado.

"A gente pode não ganhar dinheiro, mas o futebol nos dá muitas coisas. Uma hora a gente está largado e na outra estamos bem", reflete o volante, esperançoso de que voltará a estar nos gramados em breve.

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Allan não recebe salário há dois meses e depende financeiramente do irmão

Allan Alberto da Silva jogava no Interporto-TO, de Palmas, e foi mandado para casa assim que o Campeonato Tocantinense foi interrompido. Recebia R$ 2 mil e viu seu último salário pingar na conta em março. O jogador, que também atuou no Central e Afogados de Ingazeira, ambos de Pernambuco, morava no alojamento do clube, assim como boa parte de seus colegas.

Sem salário e reservas, o zagueiro de 27 anos voltou para Recife, sua cidade de origem, e passou a depender financeiramente do irmão, que é corretor de imóveis. "A gente torce para que isso passe rápido e possamos voltar a jogar e ter uma renda", afirma. Não há previsão para o Campeonato Tocantinense, suspenso nas semifinais, recomeçar.

Allan é um dos cinco jogadores desconhecidos, do chamado "futebol invisível" que aparecem no vídeo publicado recentemente pela Federação Nacional dos Atletas Profissionais de Futebol (Fenapaf) como forma de apelo à extensão do auxílio emergencial aos trabalhadores da bola.

Alex Dida trabalha fazendo entrega dos doces e pães da esposa

Alex Sandro Cardoso, apelidado de Dida, pela semelhança física com o ex-goleiro da seleção brasileira, é dos um poucos atletas que conseguiu manter o contrato na pausa do futebol. Ele estava jogando por empréstimo no Real Ariquemes-RO, mas pertence ao Atlético Acreano, que não rompeu seu vínculo. "Estamos passando apertado pois nossa maior renda vem do futebol", observa.

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Mesmo com o dinheiro do futebol mantido, o goleiro de 32 anos atua em outra atividade para aumentar a renda familiar. A sua mulher faz pães, doces e bolos e ele fica responsável por entregar as encomendas aos clientes em Porto Velho, capital de Rondônia, onde mora o casal e o filho de 11 anos.

"Aproveitamos que minha esposa sabe fazer bolos, pães e pudins para poder gerar uma renda durante a pandemia. O que mais me preocupa é o aluguel do apartamento de R$ 500 que temos que pagar todo mês", conta o goleiro. Os pedidos são todos feitos sob encomenda. "Tem dia que vendemos em torno de R$ 100. Hoje já temos três pedidos no valor de R$ 60", relata. O atleta também faz parte da campanha da Fenapaf. No vídeo, ele clama: "Para mim, esse auxílio não é privilégio, é sobrevivência".

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