Uma luta de boxe gerou um dos momentos mais polêmicos dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 após a italiana Angela Carini abandonar o combate contra a argelina Imane Khelif nesta quinta-feira (1/8) em meio a um forte debate sobre critérios em relação a gênero no esporte.
A boxeadora argelina, de 25 anos, se classificou para as quartas de final da Olimpíada na categoria feminina de até 66 kg, depois que Carini, também de 25 anos, saiu do ringue aos 46 segundos de luta.
A italiana recebeu uma pancada no rosto depois de apenas 30 segundos de luta. Assim que recebeu o golpe, ela foi até o corner pedir apoio do treinador.
E, assim que a luta recomeçou, Carini pediu para deixar o ringue.
No boxe olímpico os atletas usam obrigatoriamente um capacete de proteção que cobre basicamente a cabeça deixando porém o rosto dos lutadores expostos.
No ano passado, Khelif foi desqualificada pela Associação Internacional de Boxe após um teste indicar que ela, segundo a entidade, não atendia "critérios de elegibilidade".
Junto com a taiwanesa Lin Yu-ting, ela é uma das duas boxeadoras submetidas a um longo processo para competir no boxe feminino em Paris.
Não é a primeira participação delas em Olimpíadas. Em Tóquio elas disputaram os jogos e foram derrotadas.
Mas, desde o ano passado, foi iniciada um questionamento sobre o gênero delas, agora reavivado com a participação nos Jogos Olímpicos de Paris.
Porta-voz do Comitê Olímpico Internacional (COI), Mark Adams, disse que a polêmica acontece por conta de "rumores" já conhecidos.
"Isso deveria ficar absolutamente claro para todos. Esta não é uma questão de transgêneros. Eu sei que você sabe disso, mas acho que houve alguns relatos errôneos sobre isso. E acho que é muito, muito importante dizer que isso não é uma questão sobre transgêneros", enfatizou Adams.
A desqualificação em 2023
Grande parte da polêmica que surgiu após o anúncio da participação de Khelif e Lin em Paris 2024 começou com a desclassificação de ambas no Campeonato Mundial Feminino, na Índia, em 2023.
A Associação Internacional de Boxe (IBA), que não é reconhecida pelo COI desde 2019, as retirou da competição após realizar testes que determinaram que "não atendiam aos critérios de elegibilidade".
A IBA não divulgou publicamente quais foram os resultados dos testes.
O COI — que deixou de reconhecer a associação liderada pelo russo Umar Kremlev devido a questões de corrupção e má gestão — declarou que se tratava de "altos níveis de testosterona".
Mas comentários posteriores do presidente da IBA são citados como sugestão de que Khelif e Lin não tinham os cromossomos XX do gênero biológico feminino, mas sim os cromossomos XY do masculino.
Após a luta de quinta-feira, a IBA divulgou um comunicado dizendo que as boxeadoras "não foram submetidas a um teste de testosterona, mas sim a um teste independente e reconhecido, cujos detalhes são confidenciais".
"Este teste indicou conclusivamente que ambas as atletas não atendiam aos critérios de elegibilidade necessários e que tinham vantagens competitivas sobre outras candidatas", acrescentou a agência.
Khelif já havia participado das Olimpíadas de Tóquio, onde foi eliminada na primeira fase.
E na segunda-feira (29), quando a polêmica sobre o assunto começou a ressurgir, o COI disse em comunicado: "Todos os atletas participantes do torneio de boxe nos Jogos Olímpicos de Paris 2024 cumprem as regras de elegibilidade e inscrição da competição, assim como todas as regras médicas aplicáveis".
Khelif é acusada de não ser mulher de nascimento ou de ter mudado de identidade para competir como mulher.
Mas na Argélia, um país muçulmano, a comunidade LGBTIQ+ é amplamente reprimida. A mudança de identidade não é permitida e a homossexualidade é punida socialmente. As autoridades têm até o poder de aplicar castigos corporais.
"Isso envolve pessoas reais e estamos falando da vida de pessoas reais aqui. Elas competiram e continuam competindo em competições femininas. Elas perderam e venceram outras mulheres ao longo dos anos", enfatizou o porta-voz Mark Adams.
"Senti uma dor forte no nariz"
A italiana Carini disse que decidiu abandonar a luta para proteger sua integridade, já que nunca havia recebido um golpe como aquele.
"Não fui capaz de terminar a luta. Senti uma forte dor no nariz", disse Carini à BBC Sport.
"Espero que meu país não leve a mal, espero que meu pai não leve a mal, mas parei, disse basta para mim... Poderia ter sido o encontro da minha vida, mas naquele momento eu também tive que preservar minha vida", continuou.
"Não tive medo, não tenho medo do ringue. Não tenho medo de receber os golpes. Mas tudo tem um fim, e desta vez eu pus fim a essa luta porque não fui capaz [de continuar]."
Sobre Khelif, Carini disse aos repórteres: "Desejo que siga até o fim e seja feliz. Sou uma pessoa que não julga ninguém. Não estou aqui para julgar".
Khelif, que perdeu nove das 50 lutas em sua carreira, disse à BBC Sport: "Estou aqui pelo ouro — luto contra todo mundo".
Lin Yu-ting, que perdeu a medalha de bronze no Mundial do ano passado, luta nesta sexta (2/8). Khelif enfrentará a húngara Anna Luca Hamori no sábado.
"Minha mentalidade é nunca desistir, não importa o que aconteça. "[O abandono de Carini] é uma escolha dela. Posso prometer que lutarei até o fim. Veremos o que acontece. Eu não sei qual é a verdade. Não me importa. Eu só quero vencer."
Para Steve Bunce, analista de boxe da BBC, essa situação traz mais questões ao boxe em geral: "Acho que prejudicou o boxe olímpico num momento crucial em que seu futuro ainda está em debate. É um desastre absoluto".
"O interessante é que, na preparação para esta luta, algumas de suas ex-rivais, boas boxeadoras, campeãs mundiais e europeias, disseram que [Khelif] não é uma trapaceira", disse Bunce.
"Ela não é uma boxeadora devastadora. Sinto muita pena da Carini, mas também é preciso sentir um pouco de pena da Khelif. Ela está no meio de algo absolutamente devastador que ainda não acabou."