Para atletas inclinados a trapacear fazendo uso de drogas que melhoram o desempenho, a pandemia da covid-19 apresenta uma oportunidade extraordinária: os fiscais, por enquanto, não vão bater à porta exigindo amostras de urina ou sangue. Em tempos normais, quase todos os dias fiscais de antidopagem atravessam as fronteiras em busca de amostras de atletas de elite, enquanto outras autoridades coletam informações, ouvem denunciantes ou trabalham em laboratórios para descobrir técnicas de testagem que as coloquem um passo à frente dos trapaceiros. Mas estes não são tempos normais.
Grande parte desse trabalho foi interrompida em países sob isolamento social, cujos cidadãos foram instados a ficar em casa e evitar o contato com as outras pessoas. A situação impede que as autoridades antidoping prossigam com uma das atividades mais eficazes: testar atletas quando eles não estão competindo e não conseguem prever o dia em que farão os exames.
"É por isso que realizamos programas de testes fora do calendário de competições o ano todo", disse Travis Tygart, executivo-chefe da Agência Antidopagem dos Estados Unidos. "A covid-19 restringiu muito as ações antidoping. Seríamos tolos se pensássemos que algumas pessoas não vão fazer o possível para explorar essa situação, para que tenham melhores chances quando isso acabar".
Atletas inescrupulosos geralmente tomam drogas que melhoram o desempenho durante os treinos, para testar sua eficácia e obter uma vantagem meses antes de determinada competição.
Na sexta-feira, Tygart disse que esse hiato no trabalho dos reguladores antidoping pode durar várias semanas e que a pausa poderia fazer estragos nas tentativas de controlar a melhoria ilícita do desempenho. Os atletas tentados a experimentar drogas que melhoram o desempenho agora podem ter uma janela de oportunidade para fazê-lo. Na segunda-feira, notícias de que dois fiscais da agência antidoping da Austrália haviam testado positivo para o novo coronavírus, que causa a covid-19, lançaram luz sobre as possíveis complicações para a retomada dos exames que fazem parte do dia a dia dos atletas de elite.
Também se diz que o vírus está se espalhando pela Rússia, cuja equipe olímpica foi banida das próximas Olimpíadas por causa de um programa de doping patrocinado pelo estado. Mas a Rússia ainda pode mandar atletas para os jogos olímpicos, competindo por uma equipe neutra, desde que eles passem por uma série de testes de doping.
Embora existam relatos de que o vírus está sob controle em certas regiões da China e outras partes da Ásia, o Japão tem testemunhado uma onda de novos casos. "No final das contas, a prioridade é a segurança, a saúde das pessoas, e isso significa a saúde do pessoal antidopagem e dos atletas", disse Olivier Niggli, diretor geral da Agência Mundial Antidopagem (WADA, na sigla em inglês).
Tradicionalmente, as pessoas que usam drogas para melhorar o desempenho o fazem por um período de algumas semanas a poucos meses. As drogas possibilitam que os atletas treinem mais e se recuperem mais rápido, para que fiquem mais fortes e ágeis. Os atletas tentam agendar seus ciclos de doping para o período que antecede as principais competições, nas quais é mais provável que sejam testados, mas não muito antes, para que não perderem as vantagens que obtiveram com as drogas. As grandes competições foram suspensas por pelo menos dois meses.
O Comitê Olímpico Internacional (COI) anunciou na segunda-feira que as Olimpíadas de Tóquio ocorrerão em julho e agosto de 2021. Niggli disse que qualquer atleta que esteja cumprindo uma suspensão que se estenda até a data original dos jogos olímpicos adiados, mas que termine antes das novas datas, teria permissão para competir no próximo verão em Tóquio.
Qualquer programa de testes eficaz exige pelo menos seis meses de antecedência em relação às grandes competições, disse Niggli, e esse período de tempo não estaria disponível se os jogos fossem abertos em julho, conforme programado. As agências nacionais antidoping e as federações internacionais de esportes geralmente realizam cerca de 300 mil testes anualmente. É provável que realizem muito menos este ano.
Sebastian Coe, presidente da World Athletics, órgão governamental de atletismo, disse na sexta-feira que a quantidade de testes é uma métrica "antiquada" para avaliar a eficácia das medidas antidoping, mas reconheceu que o coronavírus está causando problemas. "O vírus claramente representa alguns desafios", disse Coe. Mas, acrescentou ele, "todas essas organizações estão muito bem em termos de coleta de informações".
De fato, os maiores casos de doping - como o programa patrocinado pelo estado russo, o caso de Lance Armstrong e da equipe de ciclismo do Serviço Postal dos Estados, o escândalo da Biogênese em 2013 - geralmente são revelados por testemunhos de denunciantes.
Mesmo assim, Tygart e Niggli disseram que, tão logo as proibições de viagens e as diretrizes de distanciamento social forem suspensas, as organizações antidopagem provavelmente adotarão um intenso programa de testes para compensar o tempo perdido - talvez priorizando atletas que já se classificaram para as Olimpíadas ou que participarão de torneios classificatórios.
A composição química das amostras coletadas será comparada com aquelas que os atletas entregaram no passado, registradas no que é conhecido como passaporte biológico. Na melhor das hipóteses, qualquer atleta que apresentar uma mudança considerada não natural será examinado com mais detalhe e, dependendo do que os testes revelarem, enfrentará penalizações. Mas nenhum regime de teste é infalível. Os trapaceiros costumam estar um passo à frente dos testadores, e é por isso que os testes regulares fora dos períodos de competição são tão importantes.
"Faremos o possível para manter a igualdade de condições e proteger o esporte justo", Witold Banka, presidente da WADA, escreveu no Twitter, no sábado, "mesmo nestes tempos difíceis".