A irlandesa Kelllie Harrington novamente estragou os planos de Bia Ferreira nos Jogos Olímpicos. Após vencer a final em Tóquio-2020, a rival voltou a derrotar a baiana, desta vez pela semifinal em Paris. Como não tem disputa de terceiro lugar no boxe na Olimpíada, a brasileira ficou com a medalha de bronze.
A cobertura dos Jogos de Paris no Terra é um oferecimento de Vale.
Com a nova derrota, Bia encerra a carreira sem conquistar a “mãe de todas”, como apelidou a busca pelo ouro olímpico, único título que não tem na carreira. Ela já afirmou que a edição na capital francesa vai representar a sua despedida dos Jogos Olímpicos. A partir de agora, ela quer se dedicar apenas ao boxe profissional.
Bia começou o primeiro tempo bem. Analisou a movimentação da irlandesa e acertou um direto e um golpe no corpo. Em seguida, Harrington a golpeou com jab e direto no rosto. A baiana saiu em desvantagem na pontuação de quatro dos cinco juízes, mesmo após apresentar bons golpes.
No segundo round, a brasileira sofreu muitos golpes enquanto buscava a entrada na irlandesa, que saiu com bons cruzados na cabeça. Em dado momento, Bia conseguiu acertar um cruzado de esquerda, ao passo que Harrington respondeu com um direto de esquerda e um jab. Ela ainda foi advertida ao empurrar a adversária num clinche. Dos cinco juízes, três deram o round para a baiana.
No último assalto, ela já iniciou com um bom direto, mas a adversária pontuou com jabs e diretos na distância. Embora Bia tenha acertado o corpo e a cabeça da irlandesa, a adversária conseguia se defender. No minuto final, Harrington golpeou e saiu, frustrando a brasileira novamente.
"Não encerrei como eu queria"
Após a disputa, a boxeadora declarou à imprensa: "Não encerrei no boxe olímpico como eu queria". “Eu acho que foi uma grande luta, que a gente deu um grande espetáculo para o público. Infelizmente, não foi o resultado que eu queria, não foi o resultado que a gente veio planejando, mas é aquilo, a gente planeja uma coisa, e Deus faz outra", disse a brasileira.
Enfrentar a atual campeã olímpica não foi uma tarefa fácil, e a atleta brasileira reconheceu a dificuldade do combate. Bia afirmou que sabia que poderia fazer melhor, mas que agora não havia muito o que lamentar. "Infelizmente não deu, desculpa ter decepcionado alguém, mas quem mais queria era eu".
Apesar da derrota, Bia demonstrou orgulho por sua equipe e destacou a importância do apoio que teve para conquistar sua segunda medalha olímpica.
“Tenho outros objetivos, e agora é focar e trazer orgulho para o meu País, para a minha equipe, que, por sinal, eu quero agradecer a todo mundo que me ajudou a chegar até aqui. Não existe um campeão sozinho. Se eu tenho duas medalhas hoje é porque eu tenho uma equipe sensacional e eu morro de orgulho deles. Eu queria presenteá-los, ser campeã olímpica, queria dar essa medalha de ouro porque todos merecem demais, todos treinamos muito para isso, eles estudaram muito para poder facilitar o meu treino de hoje, a minha performance, mas não foi o suficiente", lamentou.
Agora, Bia Ferreira está voltada para novos desafios no boxe profissional. “Tenho uma nova missão e é deixar eles cheios de orgulho no boxe profissional.”
Pressão psicológica
À imprensa, o técnico do boxe, Mateus Alves, disse que o Brasil "sentiu o psicológico" e reclamou da campanha. "Uma medalha para mim é muito pouco. Eu não vou aceitar o Brasil perder um gol, isso é uma b*sta. Eu tenho que assumir a culpa como head coach", declarou.
Ele salientou que o Time Brasil fez um ciclo impecável e que foi campeão em todos os torneios por equipe nos últimos tempos, como o Panamericano e o Continental, além de quatro medalhas mundiais.
"Então, se o time faz isso em três anos, tem que cumprir nos Jogos Olímpicos. A equipe sucumbiu à pressão psicológica. Eu estou totalmente insatisfeito com a equipe masculina. A Bia fez a parte dela, mas também sentiu hoje muita pressão e não lutou o 100%. Esse não é o 100% da Bia", afirmou.
Segundo Alves, Jucielen Romeu "tem que garantir essa segunda medalha". "Ou ganha, ou ganha. Tem que sentar agora, reavaliar, ver o que aconteceu porque é uma equipe que ganha quatro medalhas mundiais, ganha o Panamericano em cima de Cuba e Estados Unidos com o time completo. Não pode chegar aqui e não atirar golpe em cima do ringue, não pode. O boxe não pode vir para cá e pegar um bronze e achar que foi bom. Isso aí é uma outra geração. A gente tinha que pegar pelo menos duas medalhas aqui e ainda pode ser buscado".
Amor pelo boxe desde cedo
Na escola, aprendemos que certas funções do nosso corpo são desempenhadas sem que precisemos designar um pensamento de comando com relação a isso. São funções como a produção de saliva, a contração das pupilas quando saímos ao sol e a própria respiração. Para pessoas comuns, as chamadas funções involuntárias se resumem às apresentadas nos livros de biologia. Para Beatriz Ferreira, porém, é possível adicionar mais uma à lista.
Era só ouvir o barulho do toque da luva contra o saco de pancada que uma pequena Bia, ainda sem muita consciência de mundo, descia as escadas que davam para a garagem de casa, onde o pai treinava e mantinha uma academia de boxe.
"Bia chorava, ela chorava muito. Eu falava: 'Essa casa deve ser muito quente'. Quando eu descobri que, na verdade, não era isso. Ela ouvia o barulho das luvas e queria descer para poder ver. Só que ela não sabia nem falar ainda. Uma vez, me distraí, ela foi parar na academia e ralou o joelhinho", contou Suzana Soares, mãe da campeã mundial de boxe, ao especial Elas no Pódio.
A sorte de Suzana é que, se formos pensar estatisticamente, ela tem mais chances de falar com uma vencedora do que a mãe de qualquer adversária de Bia. Ela estreou no boxe profissional apenas em 2022. De lá para cá, foram cinco lutas, cinco vitórias e um cinturão mundial. Antes disso, Bia Ferreira já tinha um currículo para lá de vencedor na categoria Peso Leve (60 kg) no boxe amador: vice-campeã olímpica em Tóquio e bicampeã Mundial e Pan-Americana.
Durante a conversa com a reportagem para o especial, que aconteceu antes da Olimpíada, a boxeadora deixou de lado o machucado no joelho, mas repetiu o mesmo enredo da mãe: era só ouvir a luta que involuntariamente ia atrás. "Eu não lembro de conhecer o boxe porque o boxe já estava lá", diz.
Mesmo sem conseguir traçar a primeira memória com a modalidade, algumas lembranças vão surgindo, como o peso que o pai fez com um tubo de água ou quando ganhou sua primeira luva, que foi herança de família.
Anos depois daquela queda da escada, não é mais com os joelhos ralados de Bia que Suzana se preocupa. A mãe teme os golpes que a filha sofre em cima do ringue. Após cada luta, Bia liga para a mãe, que ainda insiste: "Eu digo: 'Tá, mas faz Zoom [ferramenta de chamada de vídeo] aí, eu quero ver'", conta, se referindo a uma videochamada para ter certeza que a filha realmente está bem e não recebeu muitos golpes das adversárias.
Legado de Bia Ferreira
"Bia deixou um legado absurdamente grande para o boxe brasileiro. Ela quebrou todos os recordes de números de vitórias, medalhas, rendimento esportivo, de todos os boxeadores brasileiros, homens e mulheres da história. Bia é hoje a atleta olímpica do Brasil mais vitoriosa da história do boxe brasileiro."
As palavras acima são do atual técnico de Bia Ferreira na seleção brasileira de boxe, Mateus Alves. O uso do verbo no passado indica que, de fato, esta será a última Olimpíada da baiana.
Não dá para saber ao certo a quantidade, mas é fato que ela já impactou muitos boxeadores brasileiros. O que podemos afirmar, com certeza, é a influência que Bia tem sobre as pessoas ao redor dela. Sua namorada, a velocista e atleta olímpica Ana Carolina Azevedo conta que o relacionamento com Bia a tem impulsionado também no esporte.
"Eu melhorei muito desde que comecei o meu relacionamento com ela. E pretendo melhorar 10 vezes mais, porque ela me incentiva muito, me inspira. Eu a amo como atleta e como pessoa", derrete-se.
Morando juntas, elas dividem uma rotina de casadas. Como os treinos são intensos para ambas, Bia e Ana Carolina aproveitam toda oportunidade que têm para ficar juntas. Às vezes, algumas datas especiais, como o aniversário da velocista, precisam ser comemoradas em outro dia para se adequar ao calendário das competições. A parte boa das duas serem atletas é a compreensão mútua e o apoio que dão uma à outra.
Para o futuro, o casal está bem alinhado. Elas têm o sonho de ser mãe e, mesmo sem saber, carregam histórias parecidas que podem ter influenciado no desejo de maternar. Ana Carolina cuidou do irmão mais novo quando perderam a mãe, o que aflorou ainda mais o instinto.
Bia, por outro lado, sempre teve a mãe ali. Mas tendo 10 anos a mais que a irmã Samira, criou uma relação de cuidado e proteção com a mais nova. "Quando eu era criança, quem cuidava de mim era a Bia. Minha mãe ia trabalhar, meu pai também. Ela é minha segunda mãe", conta Samira.
Bia prefere não estimar quando serão mamães, já Ana Carolina consegue ser um pouco mais precisa. A velocista, que diz sentir "o útero coçar", espera realizar o sonho em uns dois anos, e se imagina sendo "a mais chatinha" na criação, enquanto Bia seria a mãe brincalhona, adjetivo que aparece em quase todas as descrições sobre a boxeadora.
Quando chegar o momento, Beatriz Ferreira vai continuar fazendo o que faz de melhor, ser "uma referência". "É muito bom ter esses espelhinhos, assim, pequenos", diz a boxeadora, sobre o amor que sente por crianças.