Bia Ferreira tem round final em busca da ‘mãe de todas’ para despedida perfeita em Paris-2024

Especial Elas no Pódio conta a história da boxeadora que já ganhou praticamente tudo na carreira

16 jul 2024 - 05h00
(atualizado em 19/7/2024 às 09h58)

Na escola, aprendemos que certas funções do nosso corpo são desempenhadas sem que precisemos designar um pensamento de comando com relação a isso. São funções como a produção de saliva, a contração das pupilas quando saímos ao sol, e a própria respiração. Para pessoas comuns, as chamadas funções involuntárias se resumem às listadas nos livros de biologia. Para Beatriz Ferreira, porém, é possível adicionar mais uma à lista.

  • Essa reportagem faz parte da série Elas no Pódio, que conta histórias de seis mulheres (Rafaela Silva, Bia Ferreira, Ana Marcela Cunha, Rebeca Andrade, Viviane Lyra e Rayssa Leal) que são inspiração e referências nos seus respectivos esportes, além de representarem o Brasil nos Jogos Olímpicos de Paris.
Bia posando ao lado do pai e da mãe, em uma posição que remete à luta
Bia posando ao lado do pai e da mãe, em uma posição que remete à luta
Foto: Arquivo Pessoal

Era só ouvir o barulho do toque da luva contra o saco de pancada que uma pequena Bia, ainda sem muita consciência de mundo, descia as escadas que davam para a garagem de casa, onde o pai treinava e mantinha uma academia de boxe.

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"Bia chorava, ela chorava muito. Eu falava: 'Essa casa deve ser muito quente'. Quando eu descobri que, na verdade, não era isso. Ela ouvia o barulho das luvas e queria descer para poder ver. Só que ela não sabia nem falar ainda. Uma vez, me distraí, ela foi parar na academia e ralou o joelhinho", conta Suzana Soares, mãe da campeã mundial de boxe. 

Durante a conversa com a reportagem, que aconteceu com ringue de fundo, a boxeadora deixou de lado o machucado no joelho, mas repetiu o mesmo enredo da mãe: era só ouvir a luta que involuntariamente ia atrás. "Eu não lembro de conhecer o boxe, porque o boxe já estava lá", diz.

Mesmo sem conseguir traçar a primeira memória com a modalidade, algumas lembranças vão surgindo, como o peso que o pai fez com um tubo de água ou quando ganhou sua primeira luva, que foi herança de família.

Anos depois daquela queda da escada, não é mais com os joelhos ralados de Bia que Suzana se preocupa. A mãe teme os golpes que a filha sofre em cima do ringue. Após cada luta, Bia liga para a mãe, que ainda insiste: "Eu digo: 'Tá, mas faz Zoom [ferramenta de chamada de vídeo] aí, eu quero ver'", conta, se referindo a uma videochamada para ter certeza que a filha realmente está bem e não recebeu muitos golpes das adversárias.

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Bia Ferreira foi campeã mundial de boxe em 27 de abril deste ano
Foto: Mark Robinson /GettyImages

A sorte de Suzana é que, se formos pensar estatisticamente, ela tem mais chances de falar com uma vencedora do que a mãe de qualquer adversária de Bia. Ela estreou no boxe profissional apenas em 2022. De lá para cá foram cinco lutas, cinco vitórias e um cinturão mundial. Antes disso, Bia Ferreira já tinha um currículo para lá de vencedor na categoria Peso Leve (60 kg) no boxe amador: vice-campeã olímpica em Tóquio e bicampeã Mundial e Pan-Americana.

Para este ano, em Paris, Bia vai atrás do ouro --a medalha, que, para a família, deveria ter chegado três anos atrás. Sem fazer mistério, a lutadora diz que a capital francesa será sua despedida dos Jogos. Depois, quer "continuar fazendo história", mas focada no boxe profissional.

Para evitar qualquer confusão, vamos fazer uma pausa logo no começo para explicar a diferença entre o boxe olímpico (também chamado de amador) e boxe profissional. Na Olimpíada, o combate é disputado em três rounds de três minutos cada. Vence quem marcar o maior número de pontos. Já na disputa profissional, o objetivo é tentar chegar ao nocaute o mais rápido possível --uma luta pode durar até 12 rounds. Os pugilistas profissionais só puderam começar a competir nos Jogos Olímpicos a partir da edição do Rio de Janeiro, em 2016. Antes disso, era preciso escolher entre uma modalidade ou outra. 

Boxe que me escolheu e me segurou, diz Bia Ferreira
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Em busca do ouro olímpico

Quando Raimundo Ferreira, o Sergipe, pai de Bia, viu o juiz levantar a mão da irlandesa Kellie Harrington, na final da categoria Peso Leve em Tóquio, no Japão, ele agradeceu por ter coração forte. "Podia ter tido um infarto, morrer ali na hora", relembra.

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Bia Ferreira treinou com o pai desde a infância, sendo ele sua referência no esporte
Foto: Arquivo Pessoal

Pode ser que seja o lado pai falando, mas Sergipe garante que, como técnico, tinha certeza que aquela luta era de Bia. A família armou um churrasco para acompanhar o embate, mas a festa acabou no meio. Não é que a prata não tenha seu valor, frisa Sergipe, mas é que o ouro era a "mãe de todas".

"A gente chamava de mãe de todas porque era uma competição mais forte, faltava conquistar a mãe das outras medalhas", afirma. Antes de Tóquio, Bia Ferreira já tinha sido bicampeã mundial na categoria amadora, além de duas vezes medalhista de ouro nos Jogos Pan-Americanos.

Já Bia fala com mais leveza sobre o último ciclo olímpico. "Talvez, não era o momento certo, porque eu precisava ir até Paris. Eu tinha decidido que Tóquio seria a minha primeira e última Olimpíada, então, talvez, era para eu repensar isso", considera.

A prata em Tóquio fez com que Bia Ferreira decidisse disputar Paris-2024
Foto: Brendan Moran/GettyImages

Na preparação em busca do do título que falta no currículo, Bia treina de segunda a sábado, como detalha Matheus Alves, treinador da Seleção Olímpica de Boxe. Ele explica que o calendário de um atleta não conta nem com feriados, são duas sessões de treino por dia e uma aos sábados.

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Para este ciclo, Bia não tem mais a companhia do pai no ringue. Na época em que a reportagem conversou com ele, em maio, Sergipe contou que já tinha uns quatro meses que a filha não o visitava. Bia cumpria ciclo de treinamentos com outros atletas olímpicos em bases internacionais montadas pela Confederação Brasileira de Boxe (CBBoxe).

O início nas competições

Apesar da vivência com o boxe vir desde que se entende por gente, Bia Ferreira demorou a disputar campeonatos. É verdade que a família sempre foi sua maior apoiadora, mas, no início, havia um receio sobre a permanência dela neste mundo. A mãe, enquanto esposa de lutador, sabia bem a dificuldade que era se manter com os ganhos provenientes do boxe.

"Eu via todo o sofrimento. Tinha que passar fome, tinha que ficar sem namorar. Ganhava pouco. Ser esposa de lutador é você sofrer junto. É você fazer um feijão e você não comer porque o cara não podia comer. Então eu não queria esse sofrimento também para ela. E ver aquele dinheiro pouco entrando, é bem árduo", relembra Suzana.

Bia Ferreira, ainda criança, segurando a mão do pai, que aguardava o resultado de uma luta
Foto: Arquivo Pessoal

Hoje, com os retornos do esporte, como patrocínios de marcas, premiações de competições e o salário que recebe da Seleção, Bia Ferreira consegue dar todo o suporte que a família precisa.

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Sergipe, que apesar do apelido é baiano, chegou a ser campeão brasileiro de boxe no Peso Galo. Ainda assim, ele se lembra que a época em que teve mais retorno financeiro foi quando trabalhou na equipe de Popó, como sparring -- o oponente com quem um lutador treina.

Depois de Popó romper o contrato com os empresários da época, Sergipe aceitou uma proposta para se mudar para Juiz de Fora, em Minas Gerais, para dar aulas em uma academia. De início, toda a família se mudou junto. Mas com o divórcio, tempos depois, Suzana e as filhas, Bia e Samira, voltaram para Salvador.

Só que Bia não aguentou a distância -- talvez do pai, mas, sem dúvidas, do boxe. "Eu acho que ela estava sufocada, porque ela respira o boxe. Ela dizia assim: 'Mãe, eu quero voltar para Juiz de Fora porque eu quero treinar boxe'. Eu tomei um susto, mas, no fundo, eu já sabia que isso podia acontecer", conta Suzana.

O primeiro campeonato nacional em que Bia participou trouxe também sua primeira frustração. Foi em 2014, já com 21 anos. "Bia ganhou a luta e nocauteou uma menina que era favorita a ser campeã brasileira, nocauteou com 30 segundos. Nego ficou sem entender", relembra Sergipe.

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Foto: Terra

Porém, depois da vitória, encontraram um vídeo de Bia lutando muay-thai no Youtube, algo que, eles não sabiam, mas era motivo para desclassificá-la da competição, além de gerar uma suspensão de dois anos dos eventos promovidos pela Confederação Brasileira de Boxe. "Aquilo ali foi o terror da vida dela. Ela queria parar, queria desistir", conta o pai.

A volta veio em 2016. Bia foi chamada para uma convivência olímpica, onde treinou com a também baiana Adriana Araújo, primeira mulher a conquistar uma medalha em Jogos Olímpicos no boxe para o Brasil --foi bronze em Londres-2012. Ganhou experiência e, depois de um tempo, o primeiro salário.

"Começou a ser assalariada, ir para as competições e aí ela foi só crescendo, explodindo e passando o carro em todo mundo", diz Sergipe. O resto é história.

Legado e inspiração

Mesmo deixando de participar de Olímpiadas, Bia Ferreira continuará a ser a maior atleta de boxe brasileira
Foto: Mark Robinson /GettyImages

"Bia deixou um legado absurdamente grande para o boxe brasileiro. Ela quebrou todos os recordes de números de vitórias, medalhas, rendimento esportivo, de todos os boxeadores brasileiros, homens e mulheres da história. Bia é hoje a atleta olímpica do Brasil mais vitoriosa da história do boxe brasileiro."

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As palavras acima são do atual técnico de Bia Ferreira na Seleção Brasileira de Boxe, Mateus Alves. O uso do verbo no passado indica que, de fato, esta será a última Olimpíada da baiana.

No papo com a reportagem no Centro de Treinamento da Seleção em São Paulo, Bia diz acreditar que sua saída da competição será também uma forma de abrir portas para novos talentos: "Eu quero incentivar e quebrar barreiras."

Foto: Terra

Não dá para saber ao certo a quantidade, mas é fato que ela já impactou muitos boxeadores brasileiros. O que podemos afirmar, com certeza, é a influência que Bia tem sobre as pessoas ao redor dela. Sua namorada, a velocista e atleta olímpica Ana Carolina Azevedo conta que o relacionamento com Bia a tem impulsionado também no esporte.

"Eu melhorei muito desde que comecei o meu relacionamento com ela. E pretendo melhorar 10 vezes mais, porque ela me incentiva muito, me inspira. Eu a amo como atleta e como pessoa", derrete-se.

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Morando juntas, elas dividem uma rotina de casadas. Como os treinos são intensos para ambas, Bia e Ana Carolina aproveitam toda oportunidade que têm para ficar juntas. Às vezes, algumas datas especiais, como o aniversário da velocista, precisam ser comemoradas em outro dia para se adequar ao calendário das competições. A parte boa das duas serem atletas é a compreensão mútua e o apoio que dão uma à outra.

Para o futuro, o casal está bem alinhado. Elas têm o sonho de ser mãe e, mesmo sem saber, carregam histórias parecidas que podem ter influenciado no desejo de maternar. Ana Carolina cuidou do irmão mais novo quando perderam a mãe, o que aflorou ainda mais o instinto.

Bia, por outro lado, sempre teve a mãe ali. Mas tendo 10 anos a mais que a irmã Samira, criou uma relação de cuidado e proteção com a mais nova. "Quando eu era criança, quem cuidava de mim era a Bia. Minha mãe ia trabalhar, meu pai também. Ela é minha segunda mãe", conta Samira.

Bia prefere não estimar quando serão mamães, já Ana Carolina consegue ser um pouco mais precisa. A velocista, que diz sentir "o útero coçar", espera realizar o sonho em uns dois anos, e se imagina sendo "a mais chatinha" na criação, enquanto Bia seria a mãe brincalhona, adjetivo que aparece em quase todas as descrições sobre a boxeadora.

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Quando chegar o momento, Beatriz Ferreira vai continuar fazendo o que faz de melhor, ser "uma referência". "É muito bom ter esses espelhinhos, assim, pequenos", diz a boxeadora, sobre o amor que sente por crianças.

*Essa reportagem contou com colaboração da repórter Isabella Lima

**Coordenação e edição de Aline Küller

Fonte: Redação Terra
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