Morre Pelé: da pobreza à glória, a história do Rei do Futebol

Da infância humilde até o estrelato mundial, o "atleta do século" 20 encantou o mundo com seus dribles e gols e tornou-se parte importante da identidade brasileira

29 dez 2022 - 16h15
(atualizado às 17h34)

O jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues costumava dizer que "Pelé podia virar-se para Michelangelo, Homero ou Dante e cumprimentá-los com íntima efusão: 'Como vai, colega?'".

A grandeza de Pelé nos campos de futebol de fato alcançou o apogeu mundial, tendo sido eleito em 1980 "o atleta do século" 20. Venceu três das quatro Copas do Mundo que disputou, marcando gols em todas elas, e fez 1.283 gols — segundo o próprio atleta, já que existem várias versões para esses números.

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Edison Arantes do Nascimento, o homem, morreu aos 82 anos, na tarde desta quinta-feira (29/12), em São Paulo. Ele estava internado no hospital Albert Einstein havia um mês para tratamento de um câncer no cólon. O funeral será na cidade de Santos (SP).

"O Hospital Israelita Albert Einstein confirma com pesar o falecimento de Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, no dia de hoje, 29 de dezembro de 2022, às 15h27, em decorrência da falência de múltiplos órgãos, resultado da progressão do câncer de cólon associado à sua condição clínica prévia", diz a nota assinada pelos médicos Fabio Nasri, Rene Gansl, Alexandre Holthausen e Miguel Cendoroglo Neto.

Mas Pelé, a lenda — divisão que ele mesmo gostava de fazer, referindo-se sempre a "Pelé" na terceira pessoa do singular — segue viva na história do futebol. "O Pelé é perfeito, o Edison é uma pessoa como qualquer outra", costumava dizer.

Entre agosto e setembro de 2021, ele havia sido internado para a retirada de um tumor no cólon (parte do intestino grosso), mas se recuperou.

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Em janeiro de 2022, ele foi internado por dois dias em São Paulo "para dar sequência ao tratamento do tumor de cólon, identificado em setembro de 2021", segundo boletim da equipe médica da instituição.

Com inúmeras controvérsias em sua vida privada, o Rei do Futebol, ou apenas "Rei", teve uma vida intensa marcada por recordes imbatíveis em campo, cifras altas de pagamento e uma referência inesquecível no imaginário da identidade brasileira.

Três Corações

As curiosidades e controvérsias sobre Pelé começam pelo seu nome. Em 2010, descobriu-se a certidão original de nascimento do jogador, e só então ficou-se sabendo que ele havia nascido no dia 21 de outubro de 1940, não 23, como se pensava anteriormente, e que seu nome era grafado com "i", diferentemente do "Edson" que adotara. Em sua conta no Twitter, Pelé disse que o "Edison" seria uma referência a Thomas Edison, o inventor da lâmpada, pois nasceu na mesma época em que a eletricidade chegara a seu bairro.

Edison Arantes do Nascimento, como foi batizado, teve uma infância humilde, em que chegou a passar fome. Logo mudou-se com a família de sua cidade natal, Três Corações (MG), para Bauru (SP). Na cidade paulista, segundo ele, um dia chegou à sua casa na hora do jantar para encontrar a mãe, Celeste, em prantos porque não havia comida para alimentar a família. Para ajudá-la, vendeu amendoim e engraxou sapatos - sendo que sua caixa de engraxate, além de ser um de seus orgulhos, é uma das peças fundamentais do Museu Pelé, criado em 2014.

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Desde criança jogava futebol nas ruas sem calçamento onde morava, chutando descalço uma bola feita de pano. Foi jogando com seus amigos de escola que surgiu o apelido Pelé. Fã de um goleiro chamado Bilé, o pequeno atleta gritava "Bilé! Bilé!" quando jogava no gol, uma referência que não foi compreendida pelos amigos.

"Nós não entendíamos nada quando ele defendia uma bola e falava isso. Ninguém sabia quem era esse goleiro. Então, com essa de Bilé para cá e para lá, começamos a chamá-lo de Pelé. Ele não gostou, e foi aí que o apelido pegou mesmo", contou Raul Marçal da Silva, um amigo de infância.

Aos 9 anos de idade, em julho de 1950, Pelé viu seu pai chorar ao pé do rádio com a derrota da seleção brasileira para o Uruguai, no Maracanã, Rio de Janeiro, na primeira Copa do Mundo realizada no Brasil. A virada por 2 a 1, no que era efetivamente a final da competição, ficou conhecida como"Maracanazzo", um evento tatuado no imaginário da nação como uma das maiores dores coletivas brasileiras. Pelé disse ter sentado no colo do pai e prometido a ele: "Ainda vou ser campeão mundial para deixar você feliz".

Gráfico mostra principais números da carreira do Pelé
Gráfico mostra principais números da carreira do Pelé
Foto: BBC News Brasil

O pai, Dondinho, era sua maior referência, contou mais tarde o jogador. Dondinho era famoso por ser um exímio cabeceador - consta que marcou cinco gols de cabeça em uma única partida, em 1939. No entanto, sofreu uma grave lesão no joelho que o impediu de seguir carreira. Por coincidência, em abril de 1940, quando Pelé estava na barriga de sua mãe.

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"Eu só queria ser ele. Ele era jogador de futebol, então desde pequeno eu só queria ser jogador de futebol. Acho que tive um pouco mais de sorte", disse Pelé a jornalistas em São Paulo certa vez, em uma homenagem. "Meu pai nunca ganhou uma Copa do Mundo, então eu decidi fazer isso por ele.

Primeiras conquistas

O futuro "atleta do século" começou sua saga jogando pela equipe infanto-juvenil do Bauru Atlético Clube, time de futebol amador de Bauru, onde morava. Pelo chamado "Baquinho", conquistou o bicampeonato da Liga Citadina, em 1954 e 1955.

No ano seguinte, foi aprovado para treinar no Santos Futebol Clube, da cidade litorânea de Santos. Estreou pela equipe adulta em um jogo treino contra uma equipe da cidade vizinha de Cubatão. O Santos venceu por 6 a 1, com quatro gols de Pelé - gols que não entraram nas estatísticas de sua carreira, mas lhe abriram portas importantes, passando a jogar nas partidas oficiais da equipe. Foi o começo de sua épica jornada santista, que incluiriam dois Mundiais de Clubes e duas Libertadores da América, nos anos de 1962 e 1963.

Foi também no Santos onde teve seu maior número de conquistas: mais de 40 taças. Foi artilheiro do campeonato paulista 11 vezes, 9 delas consecutivas. Também foi artilheiro da Libertadores em 1965, da Taça Brasil três vezes e do Torneio Rio-São Paulo em 1963.

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Entrou no caminho para se tornar Embaixador Mundial do Futebol com apenas 17 anos, quando estreou na Seleção Brasileira em 1957. De cara, em seu primeiro jogo, fez um gol contra a Argentina no Estádio do Maracanã no Rio de Janeiro.

Pelé joga pela seleção brasileira em amistoso na Suécia em 1960
Foto: AFP/Getty Images / BBC News Brasil

Tornou-se campeão mundial pela primeira vez na Copa do Mundo na Suécia, em 1958, quando marcou seis gols. Na época, o racismo imperava de maneira brutal no futebol, com comissões técnicas formadas por médicos e psicólogos que faziam pareceres "científicos" que influenciavam os médicos a montarem o time titular. Resultado: geralmente os brancos iam para campo e os negros, para a reserva. Entre eles, estavam Pelé, Garrincha e Djalma Santos.

Pelé, que ainda tinha apenas 17 anos, só estreou no terceiro jogo do Brasil, contra a União Soviética, quando o treinador precisava da vitória. Didi e Nilton Santos imploraram para que Pelé e Garrincha assumissem as vagas de Joel e Mazzola, respectivamente, e os dois jogadores acabaram sendo a sensação daquele Mundial.

O Brasil venceu por 2 a 0, com dois gols de Vavá, mas a força de Pelé e Garrincha lado a lado ficou na memória do público. Nas palavras do jornalista Gabriel Hanot, idealizador da Copa dos Campeões Europeus, o massacre da dupla dinâmica contra a União Soviética foram "os três minutos mais fantásticos do futebol". E os dois jamais perderam uma partida juntos até 1966.

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Em 1961, Pelé mais uma vez marcou a história do futebol brasileiro, tendo sido responsável pelo surgimento do termo "gol de placa" durante um jogo contra o Fluminense pelo Torneio Rio-São Paulo. Em 5 de março de 1961, Pelé recebeu a bola em sua intermediária e disparou em direção aos seus adversários, driblando sete jogadores. Quando a jogada terminou, as duas torcidas aplaudiram em pé entusiasmadas com a jogada que é considerada até hoje um dos mais belos gols do futebol brasileiro.

O único tricampeão mundial

Na Copa do Chile, em 1962, Pelé participou apenas de dois jogos. Na estreia, contra o México, uma vitória por 2 a 0, ele deu o passe para o gol de Zagallo e marcou o segundo do Brasil, após driblar quatro mexicanos. Na segunda partida, porém, contra a Tchecoslováquia, sofreu uma distensão muscular que o tirou da equipe pelo resto da competição. Quem brilhou em seu lugar foi Garrincha, decisivo na conquista do segundo Mundial pelo Brasil.

A maior frustração de Pelé veio quatro anos depois, na Copa da Inglaterra, quando o sonho brasileiro do tricampeonato tornou-se um vexame histórico, refletido na 11ª colocação . "Quando você vai para sua primeira Copa do Mundo, você vai sem pressão, mas às seguintes você vai com a missão de ganhar. E, nesse caso, tive aquelas lesões, joguei e perdemos, e disso me arrependo", refletiu, anos mais tarde, sobre a lesão no joelho direito que sofreu durante o jogo contra Portugal, que terminou em 3 a 1 para os portugueses.

Em 1969, quando muitos duvidavam de sua participação em mais uma Copa do Mundo, Pelé fez o que ficou historicamente conhecido como seu "milésimo gol", numa cobrança de pênalti pelo Santos contra o Vasco da Gama, no estádio do Maracanã.

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Com o peso nos ombros por não ter participado plenamente das duas Copas anteriores devido a lesões, o Rei não apenas disputou o Mundial seguinte, em 1970, no México, como deu a volta por cima. Foi o grande destaque do torneio, em que o Brasil tornou-se tricampeão mundial. Pelé entrou de vez para o imaginário coletivo, não apenas pelo número de gols em sua carreira, mas também pela brilhante atuação na Copa mexicana, particularmente na final contra a Itália.

O mais impressionante foi o gol de cabeça que abriu o placar, quando Pelé subiu mais de um metro de altura para alcançar a bola. "Antes do jogo, disse a mim mesmo que ele era feito de carne e osso como qualquer um. Mas eu estava enganado", disse na época o treinador italiano, Tarcisio Burgnich.

Foi a última Copa do Mundo de Pelé, que ainda é o único jogador a conquistar a taça três vezes. Ele concluiu sua carreira na Seleção Brasil em 1971, com um saldo de 115 partidas e 103 gols - sendo 92 jogos oficiais, segundo a Fifa, em que marcou 77 vezes.

Após encerrar sua carreita no Santos em 1975, Pelé jogou no New York Cosmos, no período de 1975 a 1977, onde simbolizou a apresentação do futebol ao púbico americano e atuou ao lado de estrelas internacionais, como o alemão Franz Beckenbauer e o italiano Giorgio Chinaglia. O Cosmos fecharia nos anos 1980, mas seria relançado em 2010, com Pelé como seu presidente honorário.

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Na Nova York dos anos 1970, o Rei do Futebol ganhou status de celebridade. Frequentava eventos na cidade ao lado de grandes astros, do cantor Frank Sinatra ao artista Andy Warhol - o mundo inteiro queria encontrar Pelé e ser fotogrado ao lado de seu sorriso. Pelé foi ainda recebido na Casa Branca, tanto pelo presidente republicano Gerard Ford como por seu sucessor, o democrata Jimmy Carter.

Sua condição de estrela global chegou a Hollywood com o filme Fuga para a Vitória (1981), dirigido por John Huston, em que Pelé atuou ao lado do ator britânico Michael Caine, do americano Sylverster Stallone e do sueco Max von Sydow.

A experiência de Pelé como artista também incluiu a música. Pelé sempre disse que, se não fosse jogador de futebol, teria se dedicado à carreira musical, pois adorava escrever sambas. Apesar de admitir não cantar bem, Pelé fez um dueto com Elis Regina, em 1969, e no final dos anos 1970 gravou um disco com Sérgio Mendes, com destaque para a faixa Meu Mundo É uma Bola.

Vida após o futebol

Terminada sua carreira no futebol, Pelé não teve grande sucesso como comentarista de TV. Também fracassou inúmeras vezes nos negócios, com sociedades que se tornaram processos na Justiça brasileira.

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No começo dos anos 1980, após ter completado 40 anos, Pelé aparecia frequentemente em páginas de jornais e capas de revistas ao lado de sua então namorada, a modelo Xuxa, que no início do relacionamento tinha apenas 18 anos.

Foi Ministro dos Esportes entre os anos de 1995 e 1998, no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. No comando da pasta, mudou a chamada Lei Zico, que passou a ser chamada de Lei Pelé, seguindo em linhas gerais as diretrizes da Fifa para contratação de jogadores.

Depois disso, continuou o trabalho como Embaixador do Futebol com aparições em toda sorte de campanha de publicidade, o que lhe rendeu uma fortuna considerável, apesar dos fracassos nos negócios, além do apelido de "garoto propaganda do século". Estimava-se que seus rendimentos anuais superassem os US$ 15 milhões, com clientes de peso como Mastercard, Nokia e Coca-Cola.

Em sua carreira, Pelé reuniu um tesouro pessoal de valor estimado em R$ 28 milhões composto por 2.413 itens, incluindo a bola do gol mil, uma réplica da Taça Jules Rimet, medalhas das três Copas que venceu (1958, 1962 e 1970) e o troféu de "Atleta do Século", entregue pelo jornal francês L'Équipe.

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Há também objetos mais inusitados, como um frasco plástico com fragmentos do menisco direito do ex-jogador conservados em uma solução de formol e uma placa entregue por uma seleção argentina que aponta Pelé como "el mejor de todos los tiempos".

A rivalidade entre Brasil e Argentina, aliás, traduziu-se em um eterno debate sobre quem foi o melhor jogador de todos os tempos, Pelé ou Diego Maradona, questão alimentada pela imprensa e por torcedores dos dois países.

A revista inglesa FourFourTwo, por exemplo, apontou Maradona como o maior jogador da história das Copas do Mundo e Pelé no segundo lugar. A justificativa da revista foi que, apesar de Pelé ter conquistado mais Copas, sua atuação não foi tão decisiva nas conquistas quanto a do argentino em 1986. Por outro lado, a atualização de 2018 do videogame Fifa, da EA Sports, apontou Pelé como melhor que Maradona. Em uma análise do nível total do jogador, o brasileiro tirou a maior pontuação do jogo, 98, enquanto o argentino ficou com 97. Pelé venceu Maradona em todos os quesitos avaliados no jogo - ritmo, drible, chute, defesa, passe e capacidade atlética.

Quando Maradona morreu, em novembro de 2020, Pelé prestou homenagem ao jogador argentino. "Que notícia triste. Perdi um grande amigo e o mundo perdeu uma lenda. (...) Um dia, espero que possamos jogar bola juntos no céu", declarou.

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Controvérsias

A vida pessoal de Pelé foi marcada por polêmicas. Em 1996, o processo de paternidade de Sandra Regina Machado Arantes do Nascimento ganhou as manchetes brasileiras. "Nunca soube do paradeiro da mãe. Deve ter sido coisa de criança, uma escapada, uma excursão do Santos", disse o ex-jogador. Pelé negou a paternidade de Sandra Regina e recorreu 13 vezes, até fazer um exame de DNA e ser obrigado a reconhecer que ela era mesmo sua filha.

Sandra chegou a escrever um livro sobre o ocorrido, intitulado A Filha que o Rei não Quis. Mesmo após o reconhecimento de paternidade, Pelé não manteve, até onde se sabe, qualquer relação com Sandra. Ela morreu de câncer de mama em 2006, e Pelé não compareceu ao enterro.

Em entrevista ao UOL em 2002, Pelé afirmou: "Sandra preferiu recorrer aos advogados e à imprensa. Nunca havia me encontrado pessoalmente com ela até fazer o teste do DNA. Certa vez, foi feita uma tentativa de aproximação entre nós, mas ela recusou. No início, dizia que queria apenas usar o meu nome. Quando conseguiu, entrou na Justiça pedindo dinheiro".

Quando ele adoeceu, porém, os filhos de Sandra visitaram o avô no hospital e postaram nas redes sociais que "toda família tem brigas e rusgas, e a nossa não é diferente, mas há momentos em que a união e o amor são mais importantes do que qualquer coisa! Agradeço a Deus por ter proporcionado esse momento, pois era o que minha mãe mais sonhava".

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Outro problema familiar controverso enfrentado por Pelé foi o envolvimento de seu filho Edson Cholbi do Nascimento, o Edinho, com tráfico de drogas e lavagem de dinheiro. Edson foi condenado a 33 anos de prisão em 2005, teve a pena reduzida para 12 anos e 11 meses em fevereiro de 2017 e foi preso diversas vezes por não cumprir medidas da liberdade provisória. Edinho foi libertado em 2019. Em entrevista em novembro de 2020 ao canal de televisão SporTV, disse ser inocente e injustiçado.

Mas talvez uma das questões mais controversas da trajetória do Rei seja a racial. Mesmo sendo considerado o maior jogador do século 20 e uma inspiração para milhões de negros no mundo inteiro, Pelé nunca se engajou na luta antirracista. Ele inclusive sofreu racismo em diversos momentos da sua carreira, desde apelidos que recebia quando jogador - como "crioulo", "gasolina" (em referência à cor de sua pele, que era comparada à do petróleo) e alemão (uma ironia em relação ao seu tom de pele, mais uma vez). A jornalista Angélica Basthi explorou o tempo em seu livro Pelé: estrela negra em campos verdes.

Quando o goleiro Aranha foi chamado de "macaco" durante um jogo em 2014, Pelé admitiu pela primeira vez ter sofrido racismo, ainda que tenha criticado a atitude do goleiro, que não aceitou a ofensa e se tornou referência na luta antirracista nos esportes. O Rei do Futebol, por sua vez, disse que Aranha "se precipitou" e afirmou que, se tivesse parado todo jogo em que algum torcedor havia o chamado de "macaco" ou "crioulo", teria interrompido todos os jogos em que participou.

"Pelé passou a vida negando que tivesse sofrido racismo. É a primeira vez que admite ter sido chamado vários vezes de macaco ou de crioulo em campo", afirmou Angélica Basthi na época.

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No entanto, a jornalista sublinha que a trajetória do jogador contribuiu para a questão racial brasileira mesmo sem seu engajamento. "O talento e a trajetória do Pelé foram fundamentais para arrancar o espaço e o reconhecimento para o negro no futebol brasileiro, mesmo que ele nunca tenha se envolvido diretamente no combate ao preconceito racial", completou.

No Dia da Consciência Negra de 2020, Pelé dividiu opiniões na internet ao oferecer uma camisa autografada sua ao presidente Jair Bolsonaro, que tem um histórico de declarações polêmicas sobre a questão racial no Brasil - em 2019, o presidente dissera que racismo era "coisa rara" no Brasil.

Entre polêmicas e prêmios

A história do Rei do Futebol foi contada diversas vezes em livros e filmes, entre os mais recentes Pelé - O Nascimento de uma Lenda e o documentário Pelé, lançado pela Netflix em fevereiro de 2021.

Em 2016, o ex-jogador depôs como testemunha de defesa de Carlos Arthur Nuzman, ex-presidente do Comitê Olímpico do Brasil (COB) e do comitê organizador da Rio-2016, acusado de ter participado da compra de votos para a escolha do Rio como sede da Olimpíada em troca de vantagens pessoais. Pelé disse não ter conhecimento de qualquer negociata feita durante essas viagens e defendeu Nuzman dizendo que ele era um 'apaixonado pelo Brasil'.

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Pelé recebeu homenagens em várias partes do mundo. Entre as de maior prestígio, além do título de "Atleta do Século", estão o título de Sir-Cavaleiro Honorário do Império Britânico, das mãos da Rainha Elizabeth 2ª, em 1997, e o de jogador de futebol do século 20 pela Fifa em 2002.

Chorou ao receber o troféu Bola de Ouro no palco do Kongresshaus de Zurique (Suíça), em 2013. "Ganhei tantos troféus e prêmios na minha carreira, mas tinha inveja porque todos esses caras (europeus) ganharam a Bola de Ouro, que eu não pude ganhar porque não jogava na Europa. Agora agradeço a Deus por poder completar a minha coleção de troféus em casa", disse Pelé, na ocasião.

Compareceu em todas as cerimônias em sua homenagem que pôde, até que sua saúde passou a atrapalhá-lo. Conhecido por ser orgulhoso e teimoso na vida pessoal, Pelé não perdia uma oportunidade de exaltar a si mesmo e de ser homenageado pelos outros. Chegou a afirmar, sempre na terceira do singular, que "Pelé não tem comparação, é uma coisa de Deus. É como música. Há 500 bons pianistas, mas Beethoven só existiu um".

Também nunca admitiu equívocos publicamente. Por outro lado, atendia a seus fãs com uma impressionante paciência, sendo capaz de ficar horas distribuindo autógrafos.

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A partir de 2012, Pelé começou a cancelar aparições com mais frequência devido a sucessivos problemas de saúde. Passou por uma cirurgia no quadril em 2012 - na qual afirmou ter havido erro médico, o que foi refutado pelo Hospital Albert Einstein, onde ocorreu a operação. Em 2014, voltou à mesa de cirurgia para retirar cálculos renais, no ano seguinte teve hiperplasia na próstata e em 2016 teve que fazer outra cirurgia de correção no quadril, já com a locomoção bastante prejudicada.

"Mesmo sem ser mais atleta, estou pagando a conta (de lesões)", disse à Folha de S.Paulo em 2018.

Durante a pandemia do coronavírus, Pelé manteve-se isolado em casa, conversando com familiares por meio de encontros virtuais, disse seu filho Edinho, em novembro de 2020, ao SporTV. Quando voltou a fazer exames de rotina, em setembro de 2021, acabou identificando um câncer no cólon e submeteu-se a uma cirurgia para sua retirada. Ele continuou recebendo tratamento quimioterapia, o que exigiu internações em 2021 e 2022.

Pelé driblou como pôde os problemas de saúde, mas mesmo a lenda emblemática do futebol é feita de carne e osso. No entanto, como disse diversas vezes em entrevistas, fazendo um trocadilho com sua cidade natal: "Nunca tive medo de morrer, sou um homem de Três Corações". Seu legado continua.

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