10 anos de Papa Francisco: mulheres no clero e outras 'metas ainda não cumpridas'

Temas como casamento gay, métodos contraceptivos e aborto foram tratados com uma visão pastoral de acolhimento — mas sem indícios de mudança nas regras históricas do catolicismo.

12 mar 2023 - 16h59
(atualizado em 13/3/2023 às 11h46)
Temas como casamento gay, métodos contraceptivos e aborto foram tratados com uma visão pastoral de acolhimento — mas sem indícios de mudança nas regras históricas do catolicismo
Temas como casamento gay, métodos contraceptivos e aborto foram tratados com uma visão pastoral de acolhimento — mas sem indícios de mudança nas regras históricas do catolicismo
Foto: Stefano Costantino/SOPA Images/LightRocket via Getty Images / BBC News Brasil

Em abril de 2020, o papa Francisco determinou a criação de uma comissão para estudar um tema — e procurar avançar nele — que lhe parece muito caro desde o princípio de seu pontificado: o chamado diaconato feminino, ou seja, a ideia de que mulheres possam ser ordenadas diaconisas, assumindo funções hoje restritas a homens no catolicismo, como celebrar batismos e casamentos.

A ideia de reconhecer o papel das mulheres católicas dentro da Igreja, também dando a elas o direito de assumir um posto no clero, é uma das "promessas ainda não cumpridas" do papa argentino, eleito para comandar o Vaticano há 10 anos, em 13 de março de 2013.

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Mas há uma resistência interna grande na Cúria Romana — o que pode inviabilizar essa mudança ainda dentro do atual pontificado.

Não é o único ponto que Francisco ainda não resolveu, vale ressaltar.

Apesar de seus discursos pedindo tolerância zero para casos de abusos sexuais praticados por religiosos — principalmente os que envolvem pedofilia —, coibir, investigar e punir na totalidade em uma instituição tão capilarizada é tarefa difícil, e essa chaga está longe de ser erradicada.

Na seara dos costumes, as dificuldades consistem no paradigma de tentar equilibrar 2 mil anos de doutrinas com comportamentos e realidades do mundo contemporâneo.

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Assim, temas como união homoafetiva, métodos contraceptivos, aborto e casais em segunda união acabaram sendo tratados com uma visão pastoral de acolhimento — mas sem indícios de mudança nas regras históricas do catolicismo.

O fim da obrigatoriedade do celibato clerical é outro vespeiro no qual Francisco já ensaiou mexer. Sem resultados práticos. Nada mudou.

"Há algumas coisas que ele prometeu, entre aspas, e está entregando. E outras que não se resolvem mesmo de um dia para o outro", afirma à BBC News Brasil o vaticanista Filipe Domingues, vice-diretor do Lay Centre e professor na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma.

"E em alguns pontos havia uma expectativa popular de mudança, ou de algumas partes da Igreja, e ele se mostrou menos radical do que algumas pessoas esperavam."

"Ele vai passar para a história como um papa corajoso, que teve a audácia de mexer em áreas muito sensíveis. Ele toca na ferida. Mas, aos olhos do mundo, parece que não avançou tanto", diz o teólogo, historiador e filósofo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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"Não resolve o problema porque há uma estrutura milenar, uma estrutura de poder. Seria preciso algumas gerações de pessoas com a mesma mentalidade de Francisco…", comenta.

Pesquisadora da Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, a vaticanista Mirticeli Medeiros considera "difícil que Francisco avance além do que aí está".

"Em algumas pautas morais e disciplinares, ele sinalizou que não irá mexer, como a questão do celibato dos padres", analisa ela, em entrevista à BBC News Brasil.

"O que poderia ser revisto, ou pelo menos poderia se tornar matéria de debate, pelo que vamos acompanhando, mas não creio que haverá tempo hábil para isso, seria a questão do pensamento da Igreja em relação aos contraceptivos."

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Participação feminina

Considerada uma espécie de plano de governo do seu pontificado, a exortação apostólica Evangelii Gaudim, publicada em novembro de 2013, abordou as preocupações de Francisco no sentido de aumentar a participação feminina na Igreja.

"Vejo, com prazer, como muitas mulheres partilham responsabilidades pastorais juntamente com os sacerdotes, contribuem para o acompanhamento de pessoas, famílias ou grupos e prestam novas contribuições para a reflexão teológica. Mas ainda é preciso ampliar os espaços para uma presença feminina mais incisiva na Igreja", escreveu ele, que no mesmo documento comentou que "o sacerdócio reservado aos homens" é uma questão "que não se põe em discussão".

De lá para cá, foram muitas as discussões abertas. Não ainda para permitir mulheres-sacerdotisas, mas ao menos para, em algum momento, aceitá-las como aptas para serem ordenadas diaconisas — um degrau abaixo, mas já integrantes do clero.

Um diácono, na Igreja Católica, não tem o mesmo grau de um padre — e existem diáconos casados, inclusive. Mas já se trata de uma pessoa que pode exercer diversas funções semelhantes ao de um padre, inclusive celebrar batismos e abençoar casamentos.

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A italiana Alessandra Smerilli é a mulher com o cargo mais alto na história da Santa Sé
Foto: ANDREAS SOLARO/AFP via Getty Images / BBC News Brasil

O filósofo e teólogo Fernando Altemeyer Junior, professor e membro do conselho superior da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, classifica a questão como "desafio interno eclesial" de Francisco.

"[Falta a ele] propor e fazer emergir o ministério das diaconisas na Igreja Católica, como houve na Igreja nos primeiros séculos, para abrir caminho para o feminino reconhecido", afirma.

Esse debate veio à tona novamente durante o Sínodo dos Bispos para a Amazônia, ocorrido em 2018. E desde 2020 foi criada uma comissão especial para discutir e procurar resolver o tema.

De lá para cá, contudo, pouco avançou — e rumores no Vaticano dão conta de que é por causa da alta resistência de parte da Cúria.

Medeiros concorda que "há muitas resistências" ao assunto e afirma que o próprio papa, pessoalmente, "não vê consistência na instauração da prática".

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Ela menciona um exemplo que pode servir de inspiração para solucionar a questão: na Igreja Ortodoxa Grega foi criado um diaconato especial para as mulheres, não ligado ao sacramento da ordem — no caso, restrito aos homens.

"Talvez ele encontre isso como uma via", afirma.

"O tema das mulheres é muito falado por Francisco", comenta Domingues.

"Ele fala muito sobre isso, diz que a Igreja é feminina, que Maria é mais importante do que os apóstolos. E nomeou muitas mulheres para cargos altos. Mas ainda falta muito, muito poderia ser feito para a inclusão das mulheres e para dar a elas voz e poder de decisão na Igreja."

Dados divulgados pelo Vaticano mostram que o número de funcionárias mulheres da Cúria aumentaram de 846 para 1165 no pontificado de Francisco — eram 19% do total; hoje são 26%. Na escala de 10 níveis da carreira utilizada pela instituição, a maior parte está no sexto ou no sétimo níveis.

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Seis mulheres ocupam cargos de liderança que ultrapassam o décimo nível — dependem de nomeação direta do papa. Seis são subsecretárias e a religiosa italiana Alessandra Smerilli, nomeada em 2021 como secretária do Dicastério para o Serviço de Desenvolvimento Humano Integral, é a mulher que ocupa o cargo mais alto na história da Santa Sé.

Pedofilia e abusos sexuais em geral

Uma mancha na história da Igreja, os casos envolvendo pedofilia e abusos sexuais em geral sempre foram tratados com muita seriedade por Francisco. Quando assumiu o posto, ele teve contato com um dossiê sobre o assunto, elaborado pelo pontificado anterior.

Um ano após tomar posse, Francisco criou a Comissão para a Tutela de Menores e publicou uma carta após a divulgação de um relatório que indicava ter havido pelo menos mil sobreviventes de abusos sacerdotais nas últimas sete décadas.

Em reiteradas vezes, ele disse que era preciso ter "vergonha" e "pedir perdão" por escândalos sexuais no cerne da Igreja.

"Lamento profundamente. Deus chora", disse ele, em setembro de 2015, durante viagem aos Estados Unidos.

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Silhueta de homem na penumbra rezando terço em ingreja
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Sua postura, como pontífice, foi de adotar uma conduta de dar publicidade a situação assim — "crimes e pecados de abusos sexuais a menores não podem ser mantidos em segredo durante mais tempo" —, cobrando uma "vigilância zelosa".

Administrativamente, passou a cobrar uma prestação de contas dos bispos.

Comissões para investigação de fatos assim foram montadas ao redor do mundo, mas ainda é pouco, avaliam especialistas.

"A própria burocracia da Igreja impede um avanço nesse sentido. E o corporativismo, já que a Igreja é feita por homens e toda instituição humana, por mais que diga que tem um papel sacro, está sujeita a abusos. Abusos que muitas vezes são encobertos", contextualiza Moraes.

Medeiros ressalta que "a reforma de Francisco é grandiosa, mas sua execução não depende só dele".

"No combate à pedofilia, ele fez importantes avanços. Ordenou que comissões fossem criadas para cada diocese, abriu cursos para treinar membros para constituir grandes ouvidorias nos estados", enumera ela.

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Divórcio, contraceptivos, aborto

Na seara moral, não houve promessa, isso é verdade. As expectativas de mudança eram mais motivadas pela visão popular, muito baseada pelas características aparentemente mais progressistas do papa argentino, ao menos quando comparado com seus antecessores.

Na exortação Evangelii Gaudim ele enfatizou sua postura firmemente contrária ao aborto, ressaltando que "não se deve esperar que a Igreja altere a sua posição sobre esta questão" e que "não é um assunto sujeito a supostas reformas ou 'modernizações'".

"Não é opção progressista pretender resolver os problemas, eliminando uma vida humana", declarou ele, no documento.

Mas se o mesmo texto dizia que a Igreja andava fazendo "pouco para acompanhar adequadamente as mulheres que estão em situações muito duras", ele mesmo demonstrou uma postura mais pastoral no sentido de acolher quem recorreu à medida.

Em 2016, um gesto inédito: publicou uma carta autorizando os sacerdotes a absolver "de agora em diante" as pessoas "que tenham cometido o pecado do aborto".

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Francisco admitiu o uso de contraceptivos durante epidemia de zika
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Sobre contraceptivos, suas declarações também parecem mais progressistas do que qualquer ato que implique em mudança efetiva do catecismo.

Em 2016, ele declarou que a Igreja poderia flexibilizar a proibição ao uso de métodos anticoncepcionais em regiões afetadas pela epidemia de zika.

No ano passado, em viagem ao Canadá, demonstrou que tem intenção de rever a proibição católica, mas que enfrenta oposição "de muitos dos que se dizem tradicionais".

Outra questão sobre a qual se esperava um avanço é quanto aos chamados casais em segunda união, ou seja, aqueles que se divorciaram e se casaram novamente.

Havia uma expectativa de que a situação fosse oficialmente resolvida em favor deles no Sínodo dos Bispos sobre a Família, realizado em 2015.

No fim, a solução foi bem ao estilo Francisco: nada mudou na doutrina, mas há uma orientação para que os recasados sejam acolhidos pastoralmente, com cada pároco avaliando caso a caso.

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Casamento gay

Era julho de 2013 e Francisco conversou com jornalistas a bordo do avião que o levava de volta a Roma, depois de sua primeira viagem internacional como papa — ele havia estado no Brasil. Respondendo a uma pergunta, ele fez um comentário que ganharia as manchetes pelo mundo.

"Se uma pessoa é gay e procura Jesus, e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la? O catecismo diz que não se deve marginalizar essas pessoas, devem ser integradas à sociedade. Devemos ser irmãos", comentou ele.

De lá para cá, não foram poucas as vezes em que a homossexualidade foi abordada por Francisco. E, mesmo sem ele nunca ter dito nada nesse sentido, em algumas situações houve expectativa popular de que os avanços do catolicismo sobre essa questão pudessem ser ainda maiores do que o acolhimento sempre defendido pelo atual papa.

Para Medeiros, essa postura é justamente "o cumprimento do 'plano de metas' de Francisco". Porque a premissa estava na exortação Evangelii Gaudium.

"Esse apelo de ir ao encontro às pessoas marginalizadas", pontua a vaticanista.

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"Ele conseguiu instaurar e institucionalizar uma verdadeira pastoral da acolhida."

Em outubro de 2020, por exemplo, causou frisson a divulgação de algumas frases do documentário Francesco, do cineasta Evgeny Afineevsky.

Apesar das declarações do papa, não há nenhum movimento que indique que casamentos LGBTs serão reconhecidos pela Igreja
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

"Os homossexuais têm direito a estar em família, são filhos de Deus. Não se pode expulsar uma pessoa de sua família ou tornar a vida impossível para ela. O que temos que fazer é uma lei de convivência civil, para serem protegidos legalmente", afirmava o sumo pontífice, no trecho.

Mas para por aí. Se o argentino defende o direito de uniões civis homoafetivas e prega que eles devem ser acolhidos pastoralmente pelas comunidades católicas, não houve nem há nenhum movimento que indique que um dia casamentos LGBTs sejam reconhecidos pela Igreja.

"É um assunto espinhoso para a Igreja. E quando Francisco entrou nessa pauta, havia uma expectativa popular de que ele pudesse mexer com isso, mas sua postura sempre foi de acolhimento", avalia Moraes.

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"E é o que dá para fazer, porque a Igreja tem 2 mil anos de doutrinas, de reflexões, de posições, então por mais que tente dialogar com o tempo atual, ela é pré-moderna, antiga, medieval. Não é uma instituição moderna."

"Qualquer ação efetiva esbarra no dogma, na doutrina. Nessas pautas, o aspecto doutrinário se impõe. Então o papa Francisco sempre vai puxar a discussão para o âmbito pastoral, porque é onde ele consegue acolher", prossegue o teólogo.

Em março de 2021, o próprio Vaticano divulgou um comunicado reiterando que "a Igreja não dispõe, nem pode dispor, do poder de abençoar uniões de pessoas do mesmo sexo".

Celibato clerical

Dogma instituído pelo catolicismo a partir do século 12, a proibição de que sacerdotes constituam família é um tema que também costuma vir à tona quando se discute a modernização da Igreja Católica. E é outro assunto que Francisco parece não se empenhar em mudar.

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A questão apareceu de forma mais contundente no Sínodo para a Amazônia, em 2018. No documento aprovado pelos participantes do encontro, colocou-se a proposta de que, considerando a escassez de padres na região amazônica, padres fossem ordenados com a dispensa da exigência.

Desde que, pontuou o texto, fossem "homem idôneos e reconhecidos pela comunidade, que tenham diaconato permanente fecundo e recebam uma formação adequada para o presbiteriato".

Contudo, a ideia parece não ter agradado ao sumo pontífice. Na exortação pós-sinodal Querida Amazônia, publicada meses depois, o assunto foi ignorado.

Papa emérito

Domingues atenta para uma outra pendência de Francisco, que pode ter implicação em seu próprio futuro, caso ele decida em algum momento renunciar ao pontificado, "aposentado-se" como o fez seu antecessor, Bento 16 (1927-2022).

"Não há uma regulamentação da questão. Só está previsto que um papa pode renunciar", diz Domingues.

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"A figura do 'papa emérito' foi criada com a situação do Bento 16 e nunca foi regulamentada."

Francisco nunca prometeu resolver essa questão. Mas paira uma expectativa, sobretudo diante de declarações dele indicando que não desconsidera tomar, mais para a frente, uma decisão semelhante à daquele que o precedeu.

-Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/articles/c06zk4kyvmpo

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