O Brasil é um país com mais da metade da população negra. Segundo pesquisa do IBGE de 2018, 56% dos brasileiros é preto ou pardo, categorias de auto-declaração que compõem a população negra. Também aqui está a cidade com mais cidadãos negros fora do continente africano – Salvador, capital da Bahia.
Então, o que explica pardos e pretos serem apenas 24% dos deputadas e deputados (124 de 513), e 16% dos senadores e senadoras (13 de 81)?
O Terra NÓS destrinchou a história para explicar a falta de representatividade política da população negra do Brasil.
A raiz escravocrata
O Brasil foi o último país do Ocidente a abolir a escravidão. Foram cerca de 4 milhões de pessoas trazidas à força para o país, servindo de mão de obra, até a assinatura da Lei Áurea em 1888.
“É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil”, diz o primeiro dos dois artigos da lei. Mas mesmo antes disso, trazer negros da África para que trabalhassem como escravos no Brasil era proibido. Porém, a prática continou ilegalmente por quase uma década, segundo historiadores.
A lei Áurea aboliu a escravidão, mas não deu cidadania para enorme população negra recém-liberta. Sem acesso à educação, terra ou a estrutura do estado, essa população foi deixada em guetos.
A educação como barreira de cidadania
Com a chegada do século XX e o fim da escravidão, os negros no Brasil estavam libertos, mas seguiam como sub-cidadãos.
Sem um apoio do Estado, boa parte dessa população tentava encontrar um meio de estudar e encontrar uma profissão.
O estudo “Escolarização e analfabetismo no Brasil” aponta que, em 1920, o Brasil tinha uma população de 26 milhões de pessoas com cinco anos ou mais, sendo que 71,2% era analfabeta. Boa parte dessa população era negra.
Além de ser um problema social que atrapalha o desenvolvimento do país, o analfabetismo impedia que cidadãos pudessem votar.
Antes mesmo da Proclamação da República, em 1889, o analfabeto foi excluído da possibilidade de votar.
O decreto nº 3.029, de 9 de janeiro de 1881, instituiu que eram eleitores, além de quem possuía renda fixa, os “habilitados com diplomas científicos e literários de qualquer faculdade, academia, escola ou instituto nacional ou estrangeiro, legalmente reconhecidos”.
A medida só foi cair mais de 100 anos depois, em 1985, em uma Emenda Constitucional que garantiu o voto aos analfabetos a partir das eleições diretas seguintes.
A Constituinte de 1988 e as mãos brancas
O Brasil, que ao libertar os negros da escrivadão criou uma massa de cidadãos negros desassistidos e que, em sua esmagadora maioria, não tinha nem o direito de escolher seus representantes, tinha uma nova oportunidade de reescrever a história com a Constituição de 1988.
Organizações de luta por direitos da população minorizada, como a Frente Negra Brasileira e o Movimento Negro Unificado (MNU), já eram conhecidos e tinham papel fundamental na busca pela igualdade racial. No entanto, a chamada “Constituição Cidadã” foi concebida e promulgada por mãos brancas.
À época, a Câmara dos Deputados contava com 559 deputados, sendo 11 deles negros, segundo levantamento de Thula Rafaela de Oliveira Pires para a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).
Isso não quer dizer que não houve luta e discussão. Foi graças aos movimentos negros e atores da política tradicional, como a então deputada Benedita da Silva (PT-RJ), que o artigo 5° previa em um dos seus incisos:
XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei
No entanto, a redemocratização e a Constituição vigente, nascida exatamente 100 anos depois da abolição da escravidão, não reconheceu ao povo negro nenhuma reparação pelo período escravocrata e suas consequências.
A demora para a implementação da lei de cotas
Em 2003, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) reservou 45% das suas vagas para ações afirmativas, sendo 20% para negros ou indígenas. Foi a primeira medida tomada por uma instituição brasileira de ensino.
Mas foi apenas nove anos depois que a Lei de Cotas foi adotada no Brasil — novamente, após muita luta dos movimentos negros e da sociedade civil.
Assinada pelo governo de Dilma Rousseff, a lei 12.711 de 29 de agosto de 2012 diz nos seus artigos um e três:
Art. 1º: As instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.
Art. 3º: Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1º desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em proporção ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Se hoje, 10 anos depois, a lei de cotas é vista como um avanço civilizatório por grande parte dos brasileiros — pesquisa Datafolha apontou que 50% apoia a medida —, no começo do século XXI a história era diferente.
Em 2006, intelectuais e artistas chegaram a publicar um manifesto contrário à adoção da medida nas universidades e no serviço público.
“A invenção de raças oficiais tem tudo para semear esse perigoso tipo de racismo, como demonstram exemplos históricos e contemporâneos. E ainda bloquear o caminho para a resolução real dos problemas de desigualdades”, diz trecho da carta, assinada por nomes como o músico Caetano Veloso, a antropóloga Lilia Schwarcz, a pesquisadora Isabel Lustosa e o sociólogo Demétrio Magnoli. Anos depois, signatários como Schwarcz e Lustosa mudaram sua posição sobre o tema.
Já em 2003, na medida precursora da UERJ, a lei de cotas beneficiava não apenas negros, mas também a população mais carente e desassistida — o que, não por coincidência, engloba em grande medida os pretos e pardos. No Brasil, o fator racial nunca foi deixado de lado, nem mesmo pelas leis.
Com a escolaridade sendo um fator determinante na política brasileira – dos candidatos nas eleições, 63,75% têm ensino superior (completo ou incompleto), sendo que mais de 80% dos deputados federais possuem ensino superior completo – a exclusão garantida pelo sistema antes das cotas se tornava uma barreira a mais.
Oferecer mecanismos – sejam educacionais ou até mesmo financeiros – para que a população negra fique em pé de igualdade na disputa política é fundamental para um reflexo maior do que é a sociedade nas arenas de debate. A história mostra que raça sempre foi um fator político no país.