A angústia das mães atípicas após aprovação do rol taxativo da ANS

Cuidadoras, que já travavam luta para conseguir número suficiente de terapias para filhos na Justiça, temem retrocessos; entenda exceções para TEA

28 jun 2022 - 14h11
(atualizado às 16h29)
Érika Lima Sacheto e o filho Gabriel, de 4 anos, que tem Síndrome de West e Epilepsia
Érika Lima Sacheto e o filho Gabriel, de 4 anos, que tem Síndrome de West e Epilepsia
Foto: Arquivo pessoal

Há quase um mês, pais de crianças com algum tipo de deficiência e que precisam de tratamentos com muitas horas de terapia para garantirem o desenvolvimento vivem dias de apreensão e angústia. Isso porque a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça definiu, em 8 de junho, que as operadoras de planos de saúde passam a adotar o chamado 'rol taxativo', ou seja, que as empresas não precisam cobrir procedimentos que não constem na lista da Agência Nacional de Saúde Suplementar.

A decisão do STJ pode afetar o tratamento de milhares de pacientes que haviam garantido na Justiça o acesso a terapias, medicações e cirurgias. E esse é o maior medo de Fátima Febbe Sanches, que é mãe dos gêmeos Lívia e Guilherme, de 7 anos de idade, ambos com Transtorno do Espectro Autista.

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"O dia a dia tem sido uma crise de ansiedade após a outra, pois só há incertezas, o fato de agora haver possibilidade real de que, do dia pra noite, nossos filhos não tenham mais as terapias é uma tortura psicológica. Fiz um convênio para as crianças justamente para que houvesse tratamento adequado, mas agora não se sabe se irá continuar ou se haverá cortes", desabafa.

Ela acompanhou todo o desenrolar do julgamento do rol taxativo pelas redes sociais, noticiário e a própria sessão do STJ. Na prática, o plano de saúde dela está exigindo muito mais para liberação de guias para o atendimento. "Coisas que antes resolviam em 10 minutos, agora tem levado até 1h de aguardo. A sensação é de que farão de tudo para "atrasar" o nosso lado. Os dias que tenho que entrar em contato com plano para solicitar as guias das terapias são os dias mais tensos do mês", afirma Fátima.

Fátima Febbe Sanches e os filhos gêmeos Lívia e Guilherme, ambos com Transtorno do Espectro Autista (TEA).
Foto: Arquivo pessoal

O filho de Érika Lima Sacheto, Gabriel, de 4 anos, tem Síndrome de West e Epilepsia. O menino não anda, não fala e precisa de tratamento multidisciplinar, com muitas horas de sessões de fisioterapia, fonoterapia, etc. A saúde mental da mãe, que já sofre com ansiedade, está comprometida. "A evolução dele depende das terapias, por isso estava preocupada. Nem dormi quase. Tenho ansiedade e a minha maior dificuldade é ver mais o dia a dia. Fico projetando daqui um, dois anos, o que vai ser? Essa questão do rol taxativo é uma preocupação desnecessária a mais para quem já tem muitas outras", lamenta.

Érika disse que já chorou com a atendente do plano de saúde para conseguir a liberação das terapias. "Eles não escutam ou não ligam para o que você fala. Saber que a gente vai ter que brigar mais e, se entrar na Justiça, a chance de perder é grande, é difícil, né?".

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A mãe de Gabriel vive em função dos cuidados básicos do filho desde o nascimento e essa decisão do rol taxativo só cria mais uma dificuldade no dia a dia dela. "Uma mãe já coloca o filho na frente sempre. Uma mãe atípica não tem uma brecha. Às vezes, você vê uma mãe dando uma escapadinha. A mãe atípica não tem escapadinha. Várias vezes esqueço da minha saúde, esqueço de me alimentar, é o dia inteiro cuidando dele. É uma pressão muito grande. A gente vai quatro vezes por semana para a terapia. É estressante. Você acaba se anulando cada vez mais e sem perspectiva, porque a gente não sabe quando e se a criança vai ser independente um dia na vida, então, a gente vai seguindo um dia após o outro", conclui.

 

A saúde mental de mães e cuidadores após decisão do rol taxativo da ANS

Para o professor de Psicanálise Ronaldo Coelho, o que essas mães estão vivendo é extremamente angustiante e pode desencadear quadros ainda mais graves de ansiedade e depressão. "Retirar a possibilidade de um tratamento de qualidade pode ser enlouquecedor para esses cuidadores. Eles sabem que, por causa do rol, são esperadas mudanças imediatas na rotina e no orçamento familiar e, em caso de não poderem ser mantidos os tratamentos, o que essa mudança significa a longo prazo para seus dependentes", avalia.

Ele lembra que criar um filho com deficiência já é desafiador no cotidiano. "Muitas vezes, os pais passam a ter suas vidas completamente voltadas ao cuidado deste filho, passando a ser restritas as possibilidades de geração de renda familiar. E quando estamos tratando de dinheiro, para essas famílias, estamos falando em sobrevivência. Então, não é um assunto qualquer ou lateral. Ele é central para falarmos sobre saúde mental. Como você pode estar tranquilo se não pode suprir o básico para a sua existência e de seus dependentes?", indaga.

Para tentar minimamente cuidar da saúde mental em um contexto tão instável, Coelho sugere que as famílias devem seguir reivindicando e lutando por seus direitos: "Se organizar com outras pessoas que estão passando pelo mesmo problema pode parecer uma perda de tempo por um lado mas, se olhado de dentro, será a possibilidade de não se sentir sozinho, de saber que há uma rede que luta junto e que pode se amparar. Ter um propósito para lutar também ajuda a suportar a dor das feridas da batalha, imprimindo um sentido para elas", enfatiza.

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Rol taxativo da ANS: há luz no fim do túnel?

Para saber se as famílias ainda conseguem brechas e se têm possibilidades de sucesso em tratamentos de longo prazo, a reportagem do Estadão conversou com a advogada Maria Carolina Basso Biasi, que também é mãe de um menino com TEA.

1- Pelo que você observou após a aprovação do rol taxativo pelo STJ, como ficou a situação daqueles que estão em atendimento a terapias de uso contínuo, de tratamentos a longo prazo?

Sem analisar tecnicamente a decisão proferida pelo STJ e observando apenas o dia a dia das famílias e pacientes que fazem uso de tratamentos contínuos, sabemos que, infelizmente, mesmo com liminares e decisões favoráveis emitidas pelos Tribunais, os planos de saúde, em sua enorme maioria, indevidamente, já negavam, esporadicamente, reembolsos ou tratamentos. Com a proximidade do julgamento, estas negativas se tornaram mais recorrentes, mesmo sem definição sobre o tema pela Corte.

Contudo, após a decisão proferida pelo STJ, como uma avalanche, os planos de saúde, em alguns casos denunciados, suspenderam, inclusive, ventilação mecânica à pacientes que dependem, exclusivamente, deste recurso para manter-se vivos. Quanto ao tema, é claro que para um parecer sólido, restará necessário o levantamento minucioso destas negativas, mas pelo histórico, pode-se afirmar que a situação destas pessoas ficará insustentável.

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2 - Muito se disse que as crianças com autismo ficarão sem poder fazer as terapias necessárias pelos planos de saúde. Isso é verdade? Se não, quais seriam os argumentos para que os pais consigam se reorganizar?

Na prática, realmente, este julgamento impactará todos os beneficiários, inclusive os autistas, porque, infelizmente, os planos de saúde tem como premissa, a negativa geral.

Contudo, tecnicamente, temos que ressalvar a observação inserida no aditamento do voto do Ministro Luis Felipe Salomão (EMDiv REsp n. 1.886.929-SP) onde ficou destacado que o julgamento da taxatividade não contemplava as terapias destinadas aos autistas, bem como estas, em caráter ilimitado, já estavam determinadas como obrigatórias por resolução normativa e comunicado emitidos pela ANS em julho de 2021.

Neste mesmo sentido foi a Nota Técnica 1/2022 emitida pela ANS em 22/06/2022, determinando que os planos de saúde garantam a cobertura integral aos portadores de TEA no que concerne às sessões de terapia ilimitadas.

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Quanto ao método de terapia, a Nota Técnica 1/2022 cita o especificado no protocolo emitido pelo CONITEC como parâmetro a ser seguido pelos planos de saúde.

Já o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas do Comportamento Agressivo no Transtorno do Espectro Autista, publicada pela Conitec em novembro de 2021 e aprovada pela Portaria Conjunta número 7 de 12/04/22 pela Secretaria de Atenção Especializada à Saúde - Ministério da Saúde, reconheceu o ABA e outros métodos como eficazes, deixando a opção à critério da família e equipe terapêutica.

Assim, resta claro que estas normas específicas impedem qualquer negativa de tratamento para autistas pelos planos de saúde e devem ser usadas pelos pais ou cuidadores como base de contestação.

3 - A aprovação do rol taxativo causou um impacto importante na saúde emocional das famílias que, muitas vezes, não são acolhidas como deveriam com os diagnósticos de seus filhos. Como você observa isso?

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A falta de acolhimento é um problema social intrínseco por ausência de formação básica para uma sociedade neurodiversa e plural. Esta, infelizmente, ainda será uma luta diária de todos os pais de crianças e para adultos portadores de deficiência.

Agregada à esta realidade, a taxatividade, se mantida, irá sobrecarregar sobremaneira famílias já despedaçadas e, emocionalmente, fragilizadas que deveriam ser protegidas pelo sistema, em face da atual sobreposição do capitalismo ao direito e acesso à saúde e da desestruturação da proteção social do vulnerável.

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