No Brasil, esrtima-se que 330 mil mulheres vivam com HIV. E para muitas delas, a maternidade é um sonho, apesar de serem desencorajadas a gerar uma vida quando recebem o diagnóstico positivo. Mas aquelas que engravidaram após o diagnóstico, ou que já eram mães quando descobriram a doença, ressignificaram suas vidas a partir da chegada dos filhos, como as histórias das ativistas Silvia Almeida, do Movimento Nacional das Cidadãs Positivas e da escritora e publicitária Thaís Renovatto, autora do livro “5 anos comigo”. O que elas têm em comum: são mães, vivem com HIV e recomendam a maternidade para as mulheres vivendo. São pessoas que tiveram de lidar com o preconceito, a falta de informação e a insegurança.
Para Thais Renovatto, ser mãe é um ato de coragem. “Ser mãe é uma escolha muito corajosa. Eu acho injusto as mulheres com HIV desistirem desse sonho por informações erradas. Depois que lancei meu livro comecei a receber mensagens de mulheres com HIV que diziam que os médicos aconselhavam elas a não ser mães por conta do HIV. Perguntavam se elas tinham R$ 40 mil reais para fazer inseminação artificial. Este tipo de coisa é injusto, destrói sonhos.”
Sobre a escolha de ser mãe, Thais garantiu que sempre foi um sonho. “Eu queria ser mãe e não gostaria que o HIV tivesse destruído o meu sonho. Fui em busca de informações para entender quais eram os meios possíveis e tentar concretizar isso. Conversei com o meu médico, é claro que eu tinha medo de passar o HIV para o bebê. Algumas pessoas disseram para eu não engravidar, que a criança poderia nascer com HIV. Recebo várias mensagens na internet de pessoas me chamando de irresponsável, gente que fala: você tem HIV e agora seu filho também tem. É uma mistura de ódio com falta de informação.”
História de luta
“A maternidade me fez lutar, querer viver e me tornou mais forte do que o vírus HIV.” É o que diz a ativista Silvia Almeida, hoje consultora de prevenção à Aids. Ela recebeu o diagnóstico positivo para o HIV nos anos 1990, dentro de um casamento estável, dois filhos e uma vida calma e tranquila.
Quando o filho caçula de Silvia tinha um ano e dois meses ela teve de fazer o teste de HIV, com ele no colo, e também o teste dele. “Eu não sabia que eu tinha HIV, não sabia que não podia amamentar, tive parto normal. Poderia ter acontecido uma transmissão vertical, não aconteceu e essa foi a minha primeira vitória contra Aids.”
Para a ativista ser mãe soropositiva é tirar leite de pedra. “Quando eu descobri o HIV, as mortes em decorrência da Aids eram crescentes entre as mulheres. Os meus filhos foram as minhas alavancas, foi por eles que decidi não morrer de Aids. Eu queria criar os meus filhos, eles me fizeram buscar ajuda, seguir à risca tudo que existia de tratamento naquele momento, cuidar da saúde mental. Também comecei a participar do GIV (Grupo de Incentivo a Vida), ONG/Aids que até hoje acolhe pessoas vivendo, e isso fez toda diferença naquele momento. Meu ex-marido morreu em 1996, não foi fácil. Tive que ser pai e mãe e ainda me manter viva, saudável. Hoje, olho para trás e penso em tantas coisas que já vivenciei.”
Revelar o diagnóstico para os filhos
Contar para as crianças seu diagnóstico também não foi uma tarefa fácil. “A minha primogênita tinha 14 anos quando o pai morreu. Eu não sabia como contar para ela, comecei a passar com uma psicóloga na ONG. Ela me instruiu a contar, explicar que eu estava melhorando. Minha filha começou a trabalhar na mesma empresa que eu trabalhava e ficamos com medo que ela escutasse pelos corredores. Tinha o sigilo, mas também existia a rádio peão. Um dia eu a chamei e contei. Ela respondeu que estava tudo bem. Fiquei chocada com a reação. Mais tarde soube que não estava tudo bem coisa nenhuma, ela precisou de muita ajuda, mas foi o que ela conseguiu dizer naquele momento. Tivemos apoio na empresa, de amigos, foi um momento de muita solidariedade.”
O processo de revelação para o filho mais novo foi mais tranquilo. “O caçula tinha 4 anos quando o pai faleceu. Não contei imediatamente, comecei a ir com ele no Grupo de Incentivo à Vida, no grupo de crianças. Um dia encontramos o meu médico, ele falou que eu estava bem e me perguntou como estava o tratamento do HIV. O Felipe fingiu que não escutou. Quando chegamos em casa ele me perguntou se eu tinha HIV. Ele já estava com 11 anos. Lembro também que teve uma aula na escola e a professora estava explicando que as pessoas com Aids morriam. Ele levantou a mão e falou que não era verdade, que as pessoas ficavam bem e me citou como exemplo.”
Acolhimento médico
Pioneira no acolhimento de crianças com HIV no Brasil, a médica Marinella Della Negra, é infectologista e consultora do Ministério da Saúde. Ela foi uma das primeiras infectologistas a acolher no Instituto de Infectologia Emílio Ribas, ainda nos primeiros anos da epidemia, mães e crianças com HIV. Ela começou a tratar as crianças e ajudou muita gente no processo para lidar com o HIV. "Nos anos 80, os diagnósticos das mulheres eram feitos através dos filhos. A criança começava a ficar doente, perdia peso, tinha infecções. O pediatra fazia o diagnóstico e a mãe era encaminhada com o filho para o Emílio Ribas. Era um momento difícil, o preconceito era absurdo. Mulheres tinham que mudar de casa quando descobriam o diagnóstico. 15 a 20% das crianças filhas de mães com HIV nasciam com o vírus, não existia tratamento. Essas crianças iam crescendo, tínhamos psicólogos, muitas mães já tinham morrido, as crianças viviam com as avós. Imagina uma mulher que não sabia o que era HIV, que recebia os netos e tinha que levar para o hospital pelo menos uma vez ao mês. Essas mulheres foram as heroínas da década de 80, incluindo algumas tias.”
O grande problema na época, segundo a médica, foi descobrir o momento exato de contar para as crianças o que elas tinham. “Algumas pessoas falavam que a idade certa era com 8 anos, outros falavam que era para contar só quando eles perguntassem. Eu tinha uma psicóloga incrível na minha equipe, a Ana Maria. Ela descobriu que através dos desenhos as crianças já sabiam o que elas tinham, eles só não sabiam verbalizar. Os desenhos tinham caixão, ambulância. Essas crianças sabiam que eram diferentes das outras. Os amigos da rua não iam todos os meses para o hospital. A outra etapa foi sobre como verbalizar. Tínhamos que falar para eles a palavra HIV. Fazíamos isso sempre junto da família. Alguns ainda tinham mães. Quem vai contar? A família? O médico? A psicóloga? Todos juntos? A psicóloga estudava caso a caso com as famílias e só depois contávamos. Tivemos crianças que já sabiam.”
“A segunda fase foi a medicação. Eles precisavam tomar os remédios. Eu tinha uma relação boa com as crianças, sempre fui um pouco durona, explicava para eles que era importante tomar os medicamentos para não ficar no hospital tomando injeção. Perdemos muitas crianças, não gosto nem de fazer a conta. Para sobreviver, passei a pensar nos que estavam vivos. Temos um número grande de crianças que estão aí até hoje, agora são adultos. Sou avó de mais de 50. Já temos a terceira geração, filhos dessas adolescentes que nasceram todos livres do HIV.”
Com informações da Agência de Notícias da Aids*