'Amazing Grace': como composição de ex-traficante de escravos virou hino contra escravidão

O inglês John Newton (1725-1807) era capitão de navios negreiros e passou por uma mudança radical de vida, tornando-se pároco anglicano e abolicionista

5 dez 2023 - 06h28
(atualizado às 10h42)
Retrato desenhado de John Newton
Retrato desenhado de John Newton
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Por muitos perigos, labuta e armadilhas/Eu já passei/Essa graça me trouxe seguro até aqui/E a graça vai me conduzir até minha casa.

Esse é um trecho, em tradução livre para o português, de um famoso hino cristão escrito em inglês no século 18, Amazing Grace.

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Para negros escravizados e seus descendentes, essas palavras se tornaram um símbolo de resistência e esperança — mas o surpreendente é que um de seus autores havia sido no passado um capitão de navios negreiros e compôs o hino inspirado em uma experiência pessoal a que ele atribuiu o resgate de sua fé.

Era março de 1748 e o inglês John Newton (1725-1807) estava à frente de mais uma viagem transatlântica como capitão de um navio negreiro.

Mas, naquele momento, uma forte tempestade alterou o seu destino: em perigo, sua fé cristã renasceu e o fez mudar completamente de vida, a ponto de, anos mais tarde, tornar-se um abolicionista.

"O navio quase se rompeu e algumas pessoas morreram, mas ele foi resgatado e passou por uma transformação religiosa. Sua fé cristã começou a retornar", diz Tim German, um voluntário no Museu Cowper and Newton, em Olney, na Inglaterra.

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Depois do susto, Newton ainda fez mais três viagens entre 1750 e 1754 como capitão de navios negreiros — as rotas que ele fazia costumavam sair da Inglaterra, passar pelo continente africano (principalmente na costa da Guiné) e pelas Índias Ocidentais.

Em 1754, um ataque convulsivo o forçou a abandonar a vida no mar.

Vitral em homenagem a John Newton na igreja St. Peter and Paul, em Olney
Foto: Adam Jones/Creative Commons CC BY 2.0 DEED / BBC News Brasil

Em 1764, Newton foi nomeado pároco de uma igreja anglicana na cidade de Olney, a noroeste de Londres, e logo ganhou popularidade como pregador e escritor de hinos.

Ele colaborou com o poeta William Cowper, seu vizinho em Olney, nessa criação.

Juntos, eles compuseram Glorious Things of Thee are Spoken e Amazing Grace — essa, baseada em um sermão de Newton em uma missa de Ano Novo, em 1º de janeiro de 1773.

Amazing Grace ("Maravilhosa graça", em tradução livre), originalmente intitulada Faith's Review and Expectation, foi publicada pela primeira vez no livro The Olney Hymns em 1779.

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Tim German diz que as palavras de Amazing Grace não foram como um pedido de desculpas de Newton por seu papel no comércio de escravizados, mas "sobre sua jornada redentora de volta" ao cristianismo após a tempestade.

"Em Olney, eles costumavam realizar cultos todos os dias de Ano Novo e era uma tradição olhar para trás e para frente", diz o voluntário do museu.

"Ele queria ilustrar a história que estava contando [em seu sermão], que refletia sua própria vida e sua mudança de volta ao cristianismo", afirma. "Sua jornada para dizer 'meu papel na escravidão foi totalmente errado e me arrependo' só veio mais tarde."

Em 1788, Newton publicou um panfleto chamado Thoughts Upon the African Slave Trade ("Reflexões sobre o comércio de escravos africanos"), que começava com um pedido de desculpas e descrevia o que havia testemunhado durante seu tempo como capitão de navios negreiros.

A primeira edição esgotou, e cópias da segunda edição foram enviadas a todos os parlamentares britânicos.

Newton também testemunhou perante o Conselho Privado e em audiências parlamentares sobre a escravidão.

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Depois, Newton tornou-se um abolicionista e mentor de William Wilberforce, líder do movimento abolicionista britânico. Os dois também trabalharam juntos para criar um lar para escravizados libertos em Serra Leoa.

Sean Lang, professor sênior de história na Universidade Anglia Ruskin, afirma que Newton é agora considerado uma "figura muito importante" na história abolicionista, pois foi uma das primeiras pessoas a apontar o problema humanitário do comércio de escravizados.

O pároco estava na "posição perfeita" para fazê-lo porque, como ex-capitão, tinha um "conhecimento único de como o sistema funcionava".

"A maioria das pessoas naquela época não via problema nisso", afirma Lang.

"As pessoas sabiam que isso estava acontecendo, mas não conheciam todos os detalhes. Na verdade, muitos pensavam que estavam resgatando africanos, os salvando e fazendo o bem."

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"As igrejas desempenharam um papel importante ao começar a mudar opiniões e fazer com que as pessoas vissem o que estava diante dos seus olhos de uma nova maneira."

'Ele conseguiu escrever de uma forma que, como uma mulher negra, e para muitos negros, em particular os afro-americanos, pode-se ver Deus', diz a reverenda Rose Hudson-Wilkin
Foto: Andrew Matthews via REUTERS / BBC News Brasil

Lang destaca que houve uma geração — cerca de 40 anos — entre a ordenação de Newton e a Lei do Comércio de Escravos de 1807, que proibiu o comércio no Império Britânico.

"[A abolição] Foi algo enorme. Era um negócio gigante [o comércio de escravizados] e era uma tarefa difícil pará-lo. Não era possível fazê-lo sem mudar de atitude, e ele [Newton] foi um dos primeiros a começar a fazer isso", diz o professor.

"Ele deve ser admirado porque é difícil estar em minoria. Foi um processo longo e lento e ele persistiu."

Newton morreu no final de 1807, nove meses depois de o parlamento britânico ter votado pela abolição.

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A reverenda Rose Hudson-Wilkin, bispa de Dover e negra, afirma que se trata de um "hino icônico para os negros".

"É muito estranho no sentido de que foi escrito por um homem branco que estava envolvido no comércio de escravos", diz Hudson-Wilkin.

"Mas ele conseguiu escrever de uma forma que, como uma mulher negra, e para muitos negros, em particular os afro-americanos, pode-se ver Deus."

Nos últimos 250 anos, Amazing Grace tornou-se um hino conhecido internacionalmente e cantado por estrelas como Elvis Presley, Aretha Franklin e Andrea Bocelli.

Partitura com trecho de Amazing Grace
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

A Biblioteca do Congresso dos EUA tem registros de mais de 3.000 performances gravadas por diferentes músicos, individualmente ou em conjunto.

"A melodia que hoje consideramos inseparável da letra surgiu nos EUA nas primeiras décadas do século 19 e só ganhou popularidade na Grã-Bretanha nos últimos 50 anos", explica Martin Clark, chefe do departamento de música da Open University.

Para Clark, é a relação entre as palavras e a música que a torna tão popular por tanto tempo.

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"Algumas das palavras em que ela [letra] se concentra, ideias sobre graça, esperança e redenção, são coisas que tocam as pessoas ao longo do tempo", analisa.

James Walvin, professor emérito de história na Universidade de York (Inglaterra), afirma que o hino "tem um significado extraordinariamente profundo, tanto no nível da devoção quanto secular".

"Ele dá consolo em tempos de estresse, esperança para os abatidos e perspectivas de salvação para os necessitados."

O hino é um ícone em Olney, que tem uma placa na entrada da cidade dizendo "Bem-vindo a Olney, casa de Amazing Grace".

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