“Não há, nos sistemas de informação de saúde brasileiros, qualquer dado sobre aborto inseguro”. Esta é a conclusão do estudo “Aborto no Brasil: o que dizem os dados oficiais?”, publicado no Caderno de Saúde Pública em 2020, que investigou os dados oficiais sobre aborto e suas complicações no País.
A pesquisa mostrou que, ao não registrar dados incompletos sobre o aborto, o número estimado de casos fica comprometido. O mais grave, no entanto, é não ser possível detalhar em quais circunstâncias aconteceram os óbitos relacionados ao aborto, se eles foram espontâneos ou induzidos, o que empobrece a discussão sobre os riscos à saúde de mulheres que buscam o procedimento em clínicas clandestinas ou em casa, além das políticas públicas em saúde no caso de abortos legalizados. Ou seja, o aborto é uma realidade entre as mulheres que chegam a ser atendidas em unidades de saúde com sequelas de um procedimento muitas vezes mal suscedido, dezenas delas morrem, mas os óbitos não são declarados como consequência do aborto sem assistência médica.
No Brasil, o aborto só é legalizado em três situações: quando a gestação coloca em risco à vida da gestante, em caso de malformação como anencefalia fetal, por exemplo, ou quando a gravidez é consequência de um estupro. No entanto, não são incomuns os casos de mulheres que não conseguem acessar este direito, mesmo respaldadas por lei. Mais comum ainda são as mulheres que procuram fazer o procedimento de forma insegura: em clínicas clandestinas, com medicações compradas pela internet ou em casa.
O estudo
O artigo publicado foi feito pelos pesquisadores Bruno Baptista Cardoso, Fernanda Morena dos Santos Barbeiro Vieira e Valeria Saraceni. O objetivo do estudo foi descrever o cenário do aborto no país, utilizando dados públicos disponíveis para acesso nos diversos Sistemas de Informação - SIM (mortalidade), SINASC (nascidos vivos) e SIH (internação hospitalar). No período entre 2008 e 2015, ocorreram cerca de 200.000 internações/ano por procedimentos relacionados ao aborto, sendo cerca de 1.600 por razões médicas e legais.
De 2006 a 2015, foram encontrados 770 óbitos maternos com causa básica aborto no SIM. No artigo os autores deixam claro que os números oficiais não abrangem a total realidade, visto só estarem disponíveis os dados provenientes do SUS. Dados da saúde suplementar não são divulgados e por isso, acabam por comprometer a realização de uma estimativa de abortos por ano. “Essa seria uma excelente melhoria para que de fato os números fossem mais próximos à realidade do país. Ter acesso ao número de abortos (seja ele seguros ou não) é importante, principalmente para a implementação de políticas públicas de saúde. Mas não somente à saúde. Qualificar o registro de óbito, qualificar o registro de atendimento às mulheres em processo de abortamento faz com que melhoremos o serviço de saúde”, explicou Fernanda.
Ainda de acordo com o estudo não é possível identificar, com base no procedimento realizado, se o aborto foi espontâneo ou induzido e não há categoria na CID-10 específica para aborto provocado ou ilegal. Esses devem ser classificados na categoria O05 (outros tipos de aborto) ou O07 (falha de tentativa de aborto). O aborto por razões médicas e legais, por sua vez, tem código específico na CID-10. A análise das internações SUS com diagnóstico no grupo “aborto por razões médicas” é uma das possíveis formas de avaliar o acesso ao aborto legal no Brasil.
Para a médica da Família e Comunidades Débora Anhaia de Campos é possível identificar um aborto provocado dependendo das condições de saúde em que a paciente chega. “Quando o aborto é provocado por misoprostol é indistinguível do aborto espontâneo. Quando chega aborto infectado a gente sempre imagina aborto provocado por outra coisa que não seja o medicamento”, destacou. Mas mesmo com medicação, há muitos erros. “Com a internet o que se popularizou muito são os acompanhamentos on-line associados a venda do misoprostol por pessoas que dizem ser da área da saúde. Acompanho muitos grupos nas redes sociais para poder divulgar informações a respeito do abortamento com medicação de forma segura porque vejo muitos erros, por exemplo, na quantidade e modo de uso do misoprostol e também no que a mulher tem que fazer antes, durante e depois. Fora que nesses grupos não há a preocupação se a mulher não quer engravidar novamente após aquele aborto”, destacou a médica.
Sobre a falta de dados, Débora acredita que questões de violência de gênero são muito mais determinantes para impedir a discussão a aberta do tema no País. “Hoje nós sabemos quantas curetagens/aspirações uterinas são feitas pelo SUS e podemos estimar quantas são feitas após aborto provocado. Também sabemos quais são as complicações decorrentes de abortos inseguros. Penso que mesmo as pessoas conhecendo o sofrimento que é abortar de forma insegura, ainda assim muitas pessoas que são contrárias ao direito ao aborto legal acreditam que a mulher que aborta deve sofrer mesmo ou até mesmo pagar com a vida . É a continuidade do mito da sacralização da mulher através do sofrimento do parto”.