"Apuração da morte de Bruno e Dom é ausente ou incompetente"

Beto Marubo, líder indígena do Vale do Javari, critica a atuação da Polícia Federal e do Ministério Público

15 dez 2022 - 15h31
(atualizado em 16/12/2022 às 18h11)
Assassinato completou seis meses e segue sem solução
Assassinato completou seis meses e segue sem solução
Foto: Reuters

Natural da aldeia Maronal, na Terra Indígena do Vale do Javari, no Amazonas, Beto Marubo não vai à cidade de Atalaia do Norte, a maior da região, há seis meses por causa de ameaças de morte.

Ele é membro da organização indígena Univaja, que luta pela proteção de 16 grupos isolados no Vale do Javari, no Amazonas. E enfrenta no dia a dia ameaças semelhantes às que eram dirigidas ao indigenista Bruno Pereira, morto há seis meses quando fazia uma expedição pela região ao lado do jornalista britânico Dom Phillips, também assassinado.

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Assim como Pereira era, Marubo é uma referência mundial em povos isolados. Os dois eram amigos e se chamavam de "irmão do mato".

Em entrevista à DW, Marubo faz duras críticas à investigação sobre a morte de Pereira e Phillips, conduzida pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal. "Ou o Ministério Público Federal junto com a Polícia Federal não estão fazendo a investigação, ou eles estão trabalhando de forma incompetente", afirma.

Em 7 de dezembro, a Justiça Federal mandou soltar Laurimar Lopes Alves, o Caboclo, que havia sido preso preventivamente em uma investigação sobre pesca ilegal no Vale do Javari. Uma das hipóteses para o crime é de que o objetivo seria impedir Pereira de seguir lutando contra a pesca ilegal na região.

Em outubro, também já havia sido solto Ruben Dario Villar, o Colômbia, suspeito de chefiar uma quadrilha de pesca ilegal e apontado como possível mandante dos assassinatos.

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"Não vemos a Polícia Federal [atuando] em campo, não vemos esse pessoal circulando por Atalaia do Norte. Por que a Polícia Federal não está em campo?", questiona Marubo.

A entrevista com o líder indígena ocorreu em Montreal, no Canadá, durante a Conferência da Biodiversidade da ONU (COP15), onde representantes de mais de 190 países negociam o primeiro acordo global para proteger 30% das terras e oceanos no mundo.

No evento, Marubo falou sobre a situação dos indígenas isolados do Amazonas e ressaltou a importância desses povos como defensores e protetores das florestas e da biodiversidade.

"Precisamos proteger a nossa biodiversidade. Áreas protegidas no Brasil só tem uma placa informando que ali é área de proteção, já terra indígena tem gente morando ali. Nós moramos nessas terras, nós protegemos esses territórios. Placa não protege. Pressionem o Brasil para que haja demarcação de terras indígenas", disse ele a uma plateia com indígenas de várias partes da América Latina, que se emocionaram quando foi mostrada a foto de Bruno e Dom.

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DW: Como está a situação no Vale do Javari atualmente, seis meses após os assassinatos de Dom e Bruno?

Beto Marubo: Preocupante. Foi solto o principal suspeito de coordenar o crime naquela região, o tal de Colômbia. Recentemente, teve outra decisão [da Justiça] que soltou um dos homens que ajudou a ocultar os restos mortais dos corpos do Dom e do Bruno. Tudo isso demonstra duas questões importantes: ou o Ministério Público Federal junto com a Polícia Federal não estão fazendo a investigação, ou eles estão trabalhando de forma incompetente. Digo isso porque a Justiça está soltando essas pessoas com o argumento de que não há fatos novos, de que a Polícia Federal não tem apresentado elementos novos. Ou seja, as investigações não estão acontecendo nem no âmbito do Ministério Público Federal, nem da Polícia Federal.

A Univaja foi procurada pela Polícia Federal nesses seis meses de investigação? Vocês têm acesso às investigações?

Na época dos assassinatos, tivemos uma reunião com o Procurador-Geral da República [Augusto Aras] em Tabatinga. Cobramos que fosse montada uma espécie de força-tarefa com procuradores com conhecimento da Amazônia para atuarem com as duas procuradoras que estão na região investigando essas quadrilhas. Precisamos de pessoas com vivência naquela região para conduzir as investigações. E não é isso que estamos vendo. O Ministério Público não formou essa força-tarefa que pedimos e não vemos a Polícia Federal em campo, não vemos esse pessoal circulando por Atalaia do Norte. Por que a Polícia Federal não está em campo? É falta de recursos ou de pessoal ou ineficiência? Ou é omissão? Queremos entender o porquê das investigações estarem sendo conduzidas assim. O que está acontecendo agora com o caso do Dom e Bruno é o mesmo que aconteceu com o Maxciel em 2019.

(Nota da redação: Em setembro de 2019, o indigenista da Funai Maxciel Pereira dos Santos foi morto com dois tiros na nuca, à luz do dia e em frente da sua família, na principal avenida de Tabatinga, no Amazonas. O crime não foi solucionado até hoje.)

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Você tem recebido ameaças?

Todos nós que defendemos o território estamos ameaçados na região. Eu não posso ir para Atalaia do Norte por orientação das autoridades, que não conseguem garantir minha segurança. Não retorno para lá desde o período das buscas pelo Bruno e Dom. Agora vimos o ataque no rio Itacoaí contra os Kanamari.

(Nota da redação: Em novembro, cerca de 30 indígenas Kanamari, no Vale do Javari, foram atacados no rio Itacoaí, próximo do local dos assassinatos de Dom e Bruno, por pescadores ilegais armados.)

Teme que algo possa acontecer com você?

Como não ter medo? Um grande indigenista, o Bruno, foi morto naquela região. Essa continua sendo a realidade do Vale do Javari. Todos nós que defendemos a floresta estamos com medo.

Apesar disso, o grupo de indígenas que percorre o território não parou. Pelo contrário, o trabalho aumentou e eles relatam que as invasões continuam as mesmas, nada mudou. Esses índios estão atuando em seus territórios sem nenhum apoio. Eles foram treinados pelo Bruno para levantar informação sobre invasões no Vale do Javari. Com essas informações, conseguimos fazer as denúncias no Ministério Público.

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O Vale do Javari sempre foi uma região de conflitos? Como era na sua infância?

Tenho 46 anos. O Vale do Javari, quando eu era criança, não tinha esse negócio de invasão, de ameaça. Com certeza as coisas mudaram muito nos últimos anos, principalmente durante o governo Bolsonaro, que empoderou os criminosos. Hoje, temos essa realidade infeliz, uma guerra entre as pessoas que querem proteger a floresta e as que não querem.

A violência contra povos indígenas e defensores ambientais na Amazônia, em especial no Vale do Javari, tem sido citada nas discussões do governo de transição do presidente eleito Lula?

Sim, faço parte do governo de transição e coordeno o grupo de trabalho sobre índios isolados. Estamos apresentando propostas para o que o novo governo, já a partir de janeiro, comece um trabalho consistente de curto e longo prazo no Vale do Javari. Agora é cobrar do novo governo para que os trabalhos na região sejam operacionalizados em campo.

O movimento indígena apoiou a candidatura de Lula à presidência este ano. A controversa Usina Hidrelétrica de Belo Monte no curso do Rio Xingu, no Pará, foi concluída no governo do PT, em 2016. Ficou algum rancor do movimento com o partido?

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O fato de termos apoiado Lula para a presidência não significa que demos um cheque em branco para ele. Temos na nossa memória o que aconteceu em Belo Monte, que trouxe vários problemas para nossos parentes. O que fizemos ao apoiar o Lula foi uma estratégia para se contrapor a esse presidente medíocre que é o Bolsonaro.

Também apoiamos Lula porque temos esperança que Marina Silva será a nossa ministra [do Meio Ambiente], porque ela conseguiu frear o desmatamento no passado. Considerando esse contexto, há esperança. Mas vamos cobrar o governo Lula. Queremos que as promessas de campanha sejam cumpridas. Queremos um ministério indígena comandado por um indígena.

A violência contra defensores ambientais é um problema antigo na Amazônia. Você citou o assassinato do indigenista Maxciel três anos atrás. Você também associa os crimes contra Dom e Bruno ao assassinato de Chico Mendes no Acre, mais de trinta anos atrás?

Totalmente! Chico Mendes deu a vida para proteger as florestas, Dom e Bruno também, com o diferencial de que o Bruno foi além das florestas, ele protegia os povos isolados da Amazônia. Bruno sabia que proteger os índios isolados era o mesmo que proteger as florestas, porque esses povos mantêm um ecossistema sadio.

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Você chama o Bruno de "irmão do mato". Como se conheceram?

Conheci o Bruno quando ele entrou na Funai. Na época, eu trabalhava lá recebendo os novos servidores e capacitando-os. Fui uma das pessoas que ajudou a capacitar o Bruno para o trabalho de indigenista na Amazônia. Ele não conhecia a região, Bruno é do Recife. Ele foi meu aluno. Depois, em 2009, começamos a trabalhar juntos e, desde então, ele se tornou o meu "irmão de mato".

Bruno era coordenador-geral de índios isolados da Funai, mas foi exonerado no primeiro ano de governo de Jair Bolsonaro, em 2019. Como o desmonte da Funai está sendo tratado nas discussões do novo governo de transição?

Estamos pedindo ao novo governo uma adaptação na Funai. Precisamos de gente que conheça a floresta trabalhando lá e isso não pode ser terceirizado.

É fundamental abrir concursos para contratar servidores e que esses concursos reflitam a realidade de cada região da Amazônia. Não pode trazer uma pessoa de São Paulo para trabalhar no Vale do Javari, por exemplo, não vai dar certo. No último concurso da Funai, os servidores de outras regiões que foram contratados para atuar na Amazônia pediram remoção depois de um tempo. Precisamos de gente de lá atuando lá.

Também estamos falando em retomar o poder de polícia da Funai, que está paralisado por décadas em um contexto em que as quadrilhas na Amazônia estão matando os servidores em campo. Como um órgão faz fiscalização e não tem poder de polícia?

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