Pessoas LGBTQIA+ são demonizadas e consideradas "extremistas" no país de Vladimir Putin. Mas artistas da comunidade queer encontram meios de se expressar e de protestar, mesmo no exílio. Em 2020, o mundo exaltava uma nova onda de criatividade queer na Rússia, um país que havia criminalizado grande parte da vida cultural LGBTQIA+.
"A música e a cena noturna LGBTQ+ muda a forma como o mundo enxerga a juventude russa", afirmava a revista i-D em abril daquele ano. O artista, modelo e músico gay Angel Ulyanov incorporava essa ideia, com seu vídeo mais recente servindo para "desmantelar a homofobia" na ex-União Soviética.
Fundada apenas cinco anos após a aprovação da infame "lei contra a propaganda gay" do presidente Vladimir Putin, em 2013, a O-Zine, sediada em Moscou, era uma publicação de vanguarda do underground cultural queer.
Essa aparente tolerância praticamente desapareceu desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, em fevereiro de 2022. Vários artistas queer foram para o exílio e a O-Zine parece ter sido suspenso.
Em novembro de 2022, a Duma (Parlamento russo) ampliou a lei antipropaganda gay, praticamente criminalizando os relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo ou, nas palavras da lei, as "relações sexuais não tradicionais" entre menores de idade.
A nova lei bane quaisquer matérias que retratem de maneira positiva o estilo de vida LGBTQIA+ em livros, filmes, comerciais e conteúdo online. Os parlamentares dizem estar defendendo os "valores tradicionais" da Rússia contra o Ocidente liberal e permissivo - um argumento também utilizado para justificar a invasão da Ucrânia.
Para o parlamentar russo Alexander Khinshtein, a comunidade LGBTQIA+ representa "um elemento de guerra híbrida", da qual é necessária "proteger nossos valores, nossa sociedade e nossas crianças", segundo afirmou o político em outubro de 2022, ao propor a nova lei antipropaganda gay. Um mês após a aprovação, a editora russa Popcorn foi banida por vender livros com a temática LGBTQIA+.
Segundo o portal de notícias independente Meduza, a editora mudou seus negócios para outros países, como Belarus e Cazaquistão, uma vez que comprar - ao contrário de vender - livros com a temática e personagens LGBTQIA+ não é ilegal na Rússia.
Um "novo alvo" na guerra
A lei também compara os estilos de vida LGBTQIA+ à pedofilia, observou o músico gay Angel Ulyanov em postagem no Instagram. "As autoridades planejaram uma guerra não apenas na Ucrânia, mas também em sua própria sociedade, com a escolha de um novo alvo: a comunidade LGBTQ", escreveu.
"Não tenho mais raiva e revolta dessa luta contra os 'valores não-tradicionais'", continuou. "Quero apenas esquecer a existência desse país." Ulyanov deixou a Rússia e vive nos Estados Unidos. Muitos outros artistas LGBTQIA+ seguiram rumos semelhantes, incluindo o ativista LGBTQ e curador de museu Piotr Voskresensky.
Desde 2007, ele já era um dos maiores defensores dos direitos LGBTQIA+ na Rússia, "quando os protestos ainda eram permitidos", contou o artista à DW depois de escapar para a Alemanha em maio de 2023.
Antes de embarcar em seu voo, ele foi forçado a fechar uma exposição particular em São Petersburgo que exaltava algumas personalidades LGBTQIA+ russas - incluindo o célebre compositor Piotr Tchaikovsky - depois de receber ameaças.
Perseguição em nome dos "valores tradicionais"
"Desde o início da guerra, ficou bem claro para mim que uma nova onda de repressão era inevitável", afirmou. "Nos primeiros meses, tinha medo até de sair do meu apartamento."
Se a lei antipropaganda gay conseguiu expulsar a vida cultural queer da Rússia, isso ficou galvanizado em novembro de 2023, quando a Suprema Corte russa declarou que a comunidade internacional LGBTQIA+ seria parte de um "movimento extremista", e que suas atividades estariam banidas no país já no início de 2024.
Dias depois, foi noticiado que a polícia russa começara a fazer operações em bares e casas noturnas que eram pontos de encontro de lésbicas, gays, bissexuais, queer, não-binários e transgêneros.
Com o apoio da Igreja Ortodoxa russa, a iniciativa de Putin em defesa dos "valores tradicionais" ou não-ocidentais ganhou o suporte de um decreto que estabelece 2024 como sendo o "ano da família".
"Queendom" e a luta pela autoexpressão
Gena Marvin, a autodenominada ativista drag de pouco mais de 20 anos de idade, desafiava as autoridades em Moscou com suas performances artísticas queer no início dos anos 2020.
Personagem central do aclamado documentário Queendom, a artista não-binária cria figurinos altamente expressivos que com frequência trazem alguma mensagem - incluindo sobre a luta da comunidade LGBTQIA+ na Rússia.
O filme documenta a criação de um traje feito com arames farpados, uma declaração contra a guerra, com o qual ela desfilou pelas ruas de Moscou dias antes de a Rússia invadir a Ucrânia.
Gena e a diretora Agniia Galdanova acabaram sendo presas pela polícia. Foi decidido, então, que a artista, nascida e criada na longínqua Sibéria, deveria deixar o país. Ela vive atualmente em Paris, onde dá continuidade ao seu trabalho, assim como aos protestos.
"Essa não é uma história única", escreveu Gena em uma postagem no Instagram após o lançamento de Queendom no início de dezembro. "É uma documentação da liberdade humana", prosseguiu. "Um caminho de unificação, de luta pela oportunidade de sermos nós mesmos. Queendom é uma entre muitas histórias na comunidade queer", disse a artista.
Na parte final da postagem, Gena indica meios de encontrar exílio em Paris, "se você estiver pensando em deixar a Rússia".
Em meio à repressão na Rússia, as vozes criativas queer encontram meios de serem ouvidas - ainda que cada vez mais do exterior.