"Autistas não ficarão mais no armário", diz professora negra com autismo

O Terra NÓS conversou com criadores de conteúdo negros que falam sobre suas experiências no espectro

18 jun 2024 - 05h00
(atualizado às 13h22)
Sabrina Nascimento é autista e mãe atípica
Sabrina Nascimento é autista e mãe atípica
Foto: Arquivo pessoal

Se você for agora no Google e pesquisar os termos autismo ou autista, a grande maioria das imagens que aparecem na tela traz a figura de um garoto, branco, sentado em algum espaço escolar, montando ou encaixando peças. 

Essas são características ditas “clássicas” do autismo que, por décadas, fez com que homens negros e mulheres negras fossem apagados do debate e das pesquisas, acessando tardiamente o diagnótico, além de outros desafios. 

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“Foi alimentado, no senso popular, essa crença de que o autismo só acontecia em pessoas brancas, em homens, e que só era manifestado em níveis de suporte maior, pessoas com nível 2 ou 3” diz Akin Sá, 23, estudante de Farmácia, em entrevista ao Terra NÓS

O jovem autista, morador de Curitiba (PR), também tem a página Hey Autista, em que produz conteúdos para desmistificar as próprias vivências. Akin descobriu aos 16 anos que estava no espectro autista e, nessa época, percebeu a falta de representação enquanto pessoa negra e neurodivergente. Daí veio a ideia de colocar suas pautas na internet.  

“Falar sobre a comunidade autista sem falar sobre interseccionalidade de luta é um erro muito grande. Porque dentro do espectro autista nós temos uma diversidade imensa de pessoas, assim como na população humana como um todo”, pontua. 

Então, ele passou a questionar se o autismo se desenhava como uma “representação estática de um mundo azul”. E não era bem assim. 

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“Cara de autista”

“O Brasil é um país historicamente racista. E tenho relatos de pessoas pretas que tentaram ter acesso a essa estrutura do diagnóstico, chegaram na consulta com o neurologista [que tem o custo médio de R$ 1.500 a R$ 2 mil, segundo Akin] e o médico chegou a dizer ‘você não é autista, você não tem cara de autista’”, exemplifica. 

Esses marcadores de gênero, raça e idade, que dão “cara” para o autismo – assim como citamos no início desta reportagem – têm sido colocados sob outras perspectivas a partir do avanço das pesquisas com pessoas autistas. 

Um estudo publicado em 2023 pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, por exemplo, revelou que a prevalência da condição foi mais baixa em brancos, se comparada a outros grupos, como negros e hispânicos. 

Ainda de acordo com a pesquisa, os diagnósticos de transtorno do espectro autista (TEA) em mulheres também aumentou. Foi o primeiro ano em que a porcentagem de meninas com autismo superou a casa de 1% nos Estados Unidos.

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Daniela Sales, 48, administradora de empresas e criadora de conteúdo, também é uma dessas pessoas que não se enquadra nos estereótipos. De Belo Horizonte (MG), ela conta que o diagnóstico lhe trouxe alívio, mesmo que tardiamente, aos 42 anos.

Daniela Sales, de 48 anos, diz não se importar com preconceito
Foto: Arquivo pessoal

“Durante toda minha vida eu me senti um E.T., não me encaixava em lugar nenhum, tinha dificuldades de relacionamentos, vivia depressiva, ansiosa e tinha várias doenças psicossomáticas”, relembra. 

Após o diagnóstico, Daniela iniciou um processo intenso de autoconhecimento e aceitação, passo importante para conduzir o trabalho no perfil Vida de Autista.  

“Entender como meu cérebro funciona, me amar e, principalmente, me perdoar por não ser igual às outras pessoas tirou um peso das minhas costas. Tudo na minha vida melhorou.”

“Muita gente vem me falar que duvida do meu diagnóstico [nas redes sociais], me xingam, falam para procurar a religião delas para me curar e tudo que se possa imaginar, mas não me abalo com absolutamente nada disso”, comenta ela, que destaca a rede que criou e o acolhimento compartilhado online com outras pessoas autistas. 

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Daniela nasceu em 1976, período em que autistas de grau 3, ou severo, eram internados em manicômios. “Os graus 1 e 2 eram considerados crianças difíceis, birrentas, agressivas e até mesmo ‘retardadas’. Essas crianças cresceram e tiveram que sobreviver, muitas vezes criando máscaras sociais, para conseguir conviver em sociedade.”

Felizmente, com o avanço da medicina, principalmente no campo da saúde mental, e com os direitos das pessoas com autismo, o cenário passou a ser menos violento. 

Sabrina Nascimento, 42, professora em Lauro de Freitas (BA), é mãe atípica e se intitula “uma autista diferentona” no Instagram. Para ela, acompanhar outros autistas negros adultos foi essencial para deixar as máscaras de lado. 

“Esse processo [do laudo] veio depois do diagnóstico das minhas filhas, em que eu passei também a acompanhar famílias atípicas e autistas adultos na internet. Percebi características que eram parecidas com as minhas, a forma de mascarar algumas coisas para sobreviver nessa sociedade hostil”, conta. 

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“É importante falar sobre o autismo na perspectiva da raça, mas não como recorte, e sim como lente, para ampliar o debate. Conheci o perfil da Luciana Viegas, uma das primeiras mães pretas autistas na internet, e assim a rede foi crescendo e fomos nos fortalecendo”, destaca ainda. 

De acordo com dados obtidos pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad): Pessoas com Deficiência 2022, mais de 54% das pessoas com deficiência se autodeclararam negras ou pardas, representando grande parcela da comunidade de pessoas com deficiência no Brasil.

Segundo Sabrina, esses números refletem a urgência em debater a existência e saúde de pessoas negras PcD. “A gente percebia que era um debate totalmente embranquecido ao ponto de chegar pessoas dizendo que nunca viram uma pessoa autista negra.”

“Não me pareço com o estereótipo de uma pessoa autista, geralmente associam àquela pessoa considerada quase um ermitão, um homem branco, isolado, meio atrapalhado ou que é superdotado”, reitera.

9 sinais que podem indicar autismo em adultos 9 sinais que podem indicar autismo em adultos

Dia do Orgulho Autista 

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Em 18 de junho é comemorado o Dia Mundial do Orgulho Autista. A data é uma iniciativa da organização americana Aspies for Freedom e passou a ser celebrada no Brasil em 2005. 

O objetivo da data é trazer outros olhares em relação à comunidade autista, promovendo ações de conscientização e respeito às formas distintas e atípicas de pensamento, mobilidade, interação, processamento sensorial e cognitivo. 

Para Sabrina, a data se assemelha ao Dia do Orgulho LGBTQIA+, uma maneira de visibilizar as histórias das pessoas autistas, contadas por elas próprias, e que tenham apoio ao “assumirem” seu diagnóstico. 

“Ninguém mais vai ficar no armário, mascarando para se enquadrar em qualquer espaço. Uma data para celebrar as nossas existências, considerando que cada autista é único, cada vivência autista é importante, válida e legítima.”. 

Akin também concorda que é uma data de autoafirmação, para não mais se sentir reprimido ou julgado. “Não merecemos ser tolerados, temos que ser aceitos.”

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“Por tanto tempo, fomos ensinados que, para ser uma pessoa confiável, precisa olhar nos olhos; para ser considerado gentil você precisa abraçar; que para se comunicar você só pode usar a fala. Fui aprendendo a reprimir os meus instintos, não ficar balançando as minhas mãos, porque eu sabia que em algum momento alguém ia me repreender”, narra. 

Daniela pondera que, hoje em dia, as pessoas estão banalizando o diagnóstico dizendo que virou moda ser autista. “Falta conhecimento, empatia e, principalmente, compaixão com tantas pessoas que sofreram e sofrem com todas as dificuldades que permeiam o transtorno.”

“Sou mulher, negra, há alguns anos obesa, PcD e agora estou entrando no time das pessoas maduras, pois já estou com 48 anos. Então, sou um chute no estômago da sociedade. E olha, nunca fui tão feliz na minha vida! Eu simplesmente não dou a mínima para quem tem preconceito”, finaliza.

Fonte: Redação Nós
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