Mulheres indígenas LGBTQIA+ precisam resistir triplamente: pelo gênero, por serem originárias e por sua sexualidade. Por esses e outros desafios, sofrem constante apagamento sendo pouco representadas em várias esferas da sociedade.
Apesar dos desafios serem distintos, mulheres indígenas não-normativas enfrentam dificuldades diversas dentro e fora das aldeias. Os motivos não são difíceis de desvendar, e começam desde a colonização. Logo no início das primeiras invasões, mulheres originárias eram tratadas como objeto de troca. Foram elas as primeiras a serem estupradas no Brasil, como relembra Katú Mirim, 36, rapper, cantora, compositora, atriz e "sapatona convicta", como ela costuma se definir.
"Pouquíssimo se fala sobre indígenas, imagine sobre mulheres. Sobre lésbicas, piorou. Quando existe visibilidade indígena dentro do Brasil, que é machista, ela vai para os homens. As mulheres indígenas são apagadas da história. Quando falam sobre lideranças, falam sobre homens. O suicídio das mulheres indígenas, a orientação sexual das mulheres… nada disso recebe atenção. Quando se é uma mulher indígena LGBTQIA+, não existe um pingo de visibilidade. A sociedade não enxerga indígenas como humanos, éramos vistos como seres vivos sem alma. Dentro disso, a mulher indígena é o que? É o pó, é o nada. Toda vez que vemos uma mulher indígena em um lugar de destaque, significa que existiu uma luta imensa por trás. Não só dos povos como um todo, mas das mulheres em específico", observa Katú.
"A aldeia tem vergonha de ter alguém como eu aqui dentro"
Apesar de ter nascido em 1991, Majur Harachell Traytowu acredita que a sua vida só começou, de fato, em 2017. "Foi quando, finalmente, entendi que eu era uma mulher trans", relembra ela, da Terra Indígena Tadarimana, no Mato Grosso. Da etnia Boe Bororo, Majur assumiu, em 2018, o posto de cacique da aldeia. Escolhida para ser a chefe da comunidade, ela garante que sim, é respeitada - mas não totalmente. Ninguém bate de frente, mas é possível captar olhares incômodos aqui e ali. "Às vezes fico profundamente triste vendo que não existe espaço para discutir algumas pautas aqui dentro, como famílias indígenas homoafetivas. Nunca ouvi esse assunto aqui na aldeia, nem em rodas de conversa, reuniões, nada. Infelizmente, não chegou. A aldeia tem vergonha de ter alguém como eu aqui dentro", lamenta.
A realidade enfrentada por Majur, infelizmente, é apenas mais um reflexo do cenário enfrentado coletivamente por mulheres originárias que fazem parte da comunidade. Até a busca por dados e informações sobre vivências semelhantes às de Majur é uma tarefa difícil. Quase nada se fala sobre isso.
"Gostaria que mais portas fossem abertas dentro das comunidades para pessoas como eu, que são boas líderes e só querem ajudar. Aqui eu vivo isso, e sei que o mesmo acontece com indígenas não-aldeadas. Acham que não fazemos parte da sociedade, são diversos preconceitos juntos", reflete a cacique.
"As pessoas acreditarem que se somos um, não podemos ser o outro"
Deborah Martins, 28, mulher indígena do povo Pataxó, autista e lésbica, chama atenção para outro ponto. Ao falar dos povos originários, é comum que o olhar seja homogêneo, como se todos reproduzissem a mesma norma cultural. É importante lembrar que a colonização aconteceu de forma particular em cada território. Algumas comunidades tiveram maior influência da igreja católica, já outras eram tão objetificadas que a castração educativa sequer chegou. Os reflexos do passado se refletiram no futuro, e é impossível determinar um cenário universal vivenciado pela população indígena LGBTQIAP+. Cada etnia tem seus costumes.
"Depende de vários aspectos e contextos. Eu não sou uma mulher indígena que vive em uma aldeia. Atualmente, moro no interior de São Paulo e morei quase a vida toda em Alcobaça, que é uma cidade de 30 mil habitantes no extremo sul da Bahia. Minha vivência não é a mesma que a de uma pessoa indígena que mora na aldeia, assim como não é a mesma que a de uma pessoa indígena que mora numa capital. Dentro dos recortes, além de indígena e lésbica, também sou autista. É uma zona turva porque o senso comum faz as pessoas acreditarem que se somos um, não podemos ser o outro", analisa Deborah.
Na comunidade de Deborah, o jeito que a observam é distinto. O acolhimento existe, mas há também quem não a respeite. "A sociedade sempre espera muita coisa da gente e sempre nos enxerga como comunidade, mas nunca como indivíduos, com vontades, desejos e impulsos próprios", acredita.
Também é importante perceber que falar apenas sobre mulheres não-normativas, em um contexto generalizado, não é o suficiente. A racialização resulta em atravessamentos específicos, que precisam ser refletidos em suas singularidades. Katú Mirim reflete sobre essa intersecção. "Uma mulher branca lésbica pode sofrer lesbofobia, mas uma mulher racializada nunca vai nem saber se estão discriminando a sua orientação sexual ou a sua etnia. Quando estou em um espaço com a minha esposa, eu nunca sei se as pessoas estão olhando de forma discriminatória porque sou indígena ou porque somos lésbicas. Essas questões se entrelaçam, são interseccionais. E o racismo chega primeiro, né? Pelo menos para os povos originários, a gente ainda não é visto enquanto mulher. A violência de gênero encontra a violência de raça, e muitas vezes de classe, também. As pessoas sempre vão olhar e falar 'não basta ser indígena, tem que ser lésbica'. Ambas fazem com que eu tenha mais vontade de resistir", finaliza Katú.