Na manhã desta terça-feira (21), o Centro de Referência Soledad Barrett, responsável pelo acolhimento de mulheres em situação de violência no Recife, recebeu ordem de despejo. Localizada no bairro dos Aflitos, região nobre da capital, a casa de apoio havia sido ocupada no último dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, pelo Movimento Olga Benário - articulação que atua desde 2015 com ações de combate à violência contra as mulheres. Agora, com a desapropriação, mais de 90 mulheres ficarão sem acompanhamento e em risco.
A coordenadora do centro, Camila Roque, denuncia que, apesar de a casa estar sob a posse da Prefeitura do Recife há cerca de um ano, não houve uma notificação formal sobre o processo de reintegração de posse. Ela ainda destaca a falta de diálogo da gestão municipal com o movimento na tentativa de chegar a um denominador comum sobre como e onde as mulheres vítimas poderiam seguir com os atendimentos, caso fossem realojadas.
"Foi tudo muito rápido e sem a possibilidade de aviso prévio ou um diálogo coerente. Nós não fomos notificadas sobre a reintegração de posse. Hoje, por volta das seis da manhã, de maneira violenta, representantes da prefeitura estiveram no local e já chegaram quebrando os cadeados e entrando no espaço. No susto e na base da violência, eles forçaram as nossas companheiras a deixarem o local, mesmo não havendo apresentação de um mandato para tal ordem", dispara.
A coordenadora destaca que, desde a madrugada do dia 8, quando houve a ocupação, foram feitas diversas tentativas de contato com a gestão municipal por meio da Secretaria de Educação de Pernambuco, mas não houve retorno efetivo. Entre as propostas feitas pelo movimento, além de uma diálogo sobre a possibilidade de realocar os atendimentos, o centro propôs dividir o espaço para as atividades que a prefeitura promete cumprir - voltadas para a vivência de idosos, em resposta a um pedido feito, ainda em testamento, da idosa que morava no imóvel.
Como resposta, o organização afirma que a gestão municipal se prontificou, apenas, a disponibilizar ônibus para levar as vítimas de violência, que estavam em processo de acompanhamento por especialistas, de volta às residências onde moravam. Para Camila Roque, uma ação que não dialoga com as necessidades das mulheres, que serão levadas ao mesmo espaço que estarão seus agressores.
Um caso de violência contra a mulher é registrado a cada cinco horas
Abandonado há 10 anos, o imóvel, que anteriormente não apresentava função pública, também acolheu cerca de 25 crianças. Com os atendimentos gratuitos - que contavam com cerca de 42 profissionais voluntárias, entre elas advogadas, psicólogas e assistentes sociais - suspensos, o movimento afirma ter que estudar novas alternativas para dar continuidade ao trabalho.
"Só em Recife, nos últimos dez anos, no mesmo tempo em que o imóvel que ocupamos estava sem uso, o número de violência contra mulher subiu cerca de trezentos por cento. Nós estamos falando também sobre Pernambuco, que ocupa o título de terceiro estado mais violento para mulheres em um país que é o quinto mundial. Um cenário que precisava da criação de diversas políticas públicas de proteção e acolhimento, mas conta com a agressão de despejar mulheres que já haviam sido agredidas em outros espaços", dispara a coordenadora.
Para Carol Vergolino, integrante da mandata coletiva Juntas Codeputadas (PSOL-PE), a situação do Soledad Barrett é definida como "absurda". A parlamentar explica que a sociedade civil, através de uma articulação nacional feita por mulheres, estava suprindo o que as gestões não conseguem fazer, que é acolher mulheres em situações de violência, quando foi despejada sem alternativas.
É inadmissível que, no lugar de fazerem parceria com o movimento, viabilizar a ocupação da casa ou de articular um atendimento junto aos movimentos sociais, a gestão municipal, junto a gestão estadual, aja dessa forma. Em Pernambuco, nós só temos cinco casas de acolhimento, uma estrutura que não supre os números de feminicídio aqui. Os números só crescem e a vulnerabilidade das mulheres, sobretudo negras, também. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 62% das mortes por agressão no país são de mulheres negras. Avaliando os números, o que vem sendo feito aqui?", reflete.
Ainda de acordo com Carol, o jurídico das Juntas Codeputadas, na tentativa de dar mais tempo para que o Movimento Olga Benário buscasse por alternativas para dar continuidade aos atendimentos no Recife, expediu um ofício para a Secretaria de Defesa Social, a SDS, mas não houve acordo. Entre os pedidos, havia uma solicitação de mais uma rodada de negociação do espaço, mas que, prontamente, não foi acolhida.
A opinião é compartilhada pelo vereador do Recife, Ivan Moraes (PSOL-PE). Para o parlamentar, que realizou visita ao casarão onde funcionava o centro de referência, a estrutura presente poderia atender às duas demandas, seja a de convivência de idosas como a de mulheres vítimas de agressões. Definindo como importante a ação do Olga Benário, de ocupar um espaço desocupado e pressionar a prefeitura para a ampliação de serviços de acolhimento, ele lamenta a falta de diálogo da gestão.
"Nós estamos falando de demandas que não são excludentes, entendendo, inclusive, que o espaço poderia ter uma ala de atendimento específico para mulheres idosas. Acredito que faltou diálogo para uma melhor saída possível. Agora, a luta é cobrar que a gestão se aproprie do imóvel, apresentando urgentemente um projeto de atendimento, ocupando a casa com qualidade. O que não pode ocorrer é que se desfaça, ignore as demandas sociais e acabe cedendo ao capital imobiliário", pontua.
Agora, o Centro de Referência Soledad Barrett entra para o quadro de casas articuladas pelo Movimento Olga Benário que são desapropriadas, sendo a teceira a sofrer com despejos. Recentemente, a casa Carolina Maria de Jesus, em Santo André (SP), e a casa Antonieta de Barros, em Florianópolis (SC), sofreram com ordens de desocupação, sem apresentação de alternativas por parte das gestões públicas locais. Para Camila Roque, mesmo com o atual cenário, a luta por meios de combate à violência de gênero continua.
"Nós vamos continuar com a nossa luta, através da solidariedade das pessoas e, agora, buscar alternativas para essas mulheres que não tem para onde ir, que estão desalojadas. São várias questões a serem definidas e pensadas enquanto movimento, mas seguimos com o objetivo que estas mulheres não sejam mais um número nas estatísticas de violência e feminicídio", finaliza.
Em busca de posicionamento por parte da Prefeitura do Recife, a Alma Preta Jornalismo entrou em contato com a assessoria, mas, até o fechamento da publicação, não recebeu retorno.
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