"O que eu mais gosto de fazer aqui é cozinhar. Meu prato favorito é comida japonesa, mas ainda não fiz. Desde a adolescência queria saber como seria a vida fora da casa dos meus pais e tive o estímulo da minha mãe. Eu fui um apoio para ela e ela mostrou apoio comigo quando passei a morar sozinho", conta Pedro Baião, ator carioca de 33 anos com síndrome de Down. Ele vive no ULiving, no bairro do Flamengo, prédio residencial que abriga o projeto da primeira moradia para adultos com deficência intelectual e/ou autismo do Brasil.
Pedro adora ter o próprio canto. "Me viro bem na faxina e costumo receber visitas dos meus pais e da minha avó", relata. As aulas na faculdade de Produção Audiovisual na Estácio, os estudos de italiano e os ensaios de um espetáculo tetral com estreia marcada para abril não o impedem de cuidar do apê e de suas plantas com o maior carinho. E, tampouco, de socializar com os outros seis moradores do ULiving.
O projeto foi desenvolvido pelo Instituto JNG, fundado em 2013 pelas mães de João, Nicolas e Gabriella (o trio JNG), jovens autistas que na época estudavam no mesmo colégio. Preocupadas com o futuro de seus filhos e, ao mesmo tempo, cientes da importância da autonomia de pessoas com deficiência, elas pesquisaram e mapearam moradias no Brasil e no exterior.
No final de 2020, em plena pandemia, foi constituído um grupo-piloto com 16 famílias (pais e filhos de 19 a 34 anos) para discutir o lançamento do projeto com recursos próprios. Em agosto de 2021, quatro famílias toparam o desafio e, em novembro do mesmo ano, selaram uma parceria imobiliária com a ULiving, que já era um residencial para estudantes.
Protagonismo da pessoa com deficiência
Segundo a coordenadora Flávia Poppe, um dos maiores benefícios da moradia independente para pessoas com deficiência intelectual é o protagonismo. "É comum enxergá-las como eternas crianças ou seres incapazes de se virarem sozinhos ou tomarem decisões. Um projeto como esse tem natureza 100% anticapacitista", define ela. Seu filho, Nicolas, tem 31 anos e mora no local desde o início. "A socialização e a sensação de independência são os maiores ganhos. Eles se sentem donos da própia vida", conta Flávia.
A perspectiva de ter a própria casa é transformadora em muitos sentidos: aumento de vocabulário, postura corporal, manifestação de seus anseios e desejos, novo posicionamento junto à família, além de ganhos de autonomia nas atividades da vida diária tais como aprender a cozinhar, a lavar roupa e a praticar o autocuidado.
Os moradores ocupam o mesmo andar e habitam apartamentos do tipo quitinete, todos iguais. Eles contam com uma Base de Apoio profissional 24 horas, sediada no mesmo andar, composta por um psicólogo, uma auxiliar de enfermagem, uma pedagoga e uma assistente social. Cada um tem sua agenda independente - afinal, são adultos - e todos têm à disposição lavanderia, co-working e uma sala de jogos.
"Além das reuniões quinzenais com a coordenação do projeto, eles costumam se organizar por conta própria para dividir uma pizza ou irem ao cinema. A inclusão não se dá apenas no prédio, mas sobretudo no bairro, como nos momentos em que vão sozinhos ao supermercado ou à farmácia", relata Flávia, economista especializada em políticas públicas que prevê parcerias para tornar o projeto mais sustentável e inclusivo.
Autonomia e vida a dois
Outro formato do projeto é o programa Meu Suporte JNG, voltado para o adulto com deficiência intelectual e/ou autismo que já mora ou vai morar sozinho em breve, em qualquer cidade do Brasil. O agente de apoio local é selecionado, capacitado e treinado na metodologia JNG e o serviço amplia a atuação do Instituto ao viabilizar o apoio individualizado validado na moradia independente no Rio de Janeiro, no apartamento e/ou casa do adulto com deficiência, beneficiando um número maior de famílias.
A atriz, escritora e ativista Tathi Piancastelli, de 38 anos, saiu da casa dos pais para morar com uma amiga em um apartamento em Campinas (SP). Com o programa, aprendeu a organizar a agenda e questões relacionadas à alimentação, limpeza, saúde e segurança. "Minha maior preocupação era a gestão das compras de casa", diz Tathi.
Recém-casada com o escritor e palestrante Vinicius Ergang Streda, também com Down, hoje ela se sente segura para iniciar uma nova fase em sua vida. "O apoio do programa permanece, mas sem cunho assistencialista e protetivo, pois acreditamos que o adulto com deficiência pode conduzir sua própria vida. Esse apoio deve ser profissional e personalizado: nunca fazer por ele/a ou para ele/a, mas, sim, estimular e apoiar para que aprendam, e assumam responsabilidades, de acordo com suas necessidades e singularidade", esclarece Flávia.