Nas próximas eleições, uma nova regra tentará "mexer no bolso" dos partidos para enfrentar um problema histórico das casas legislativas brasileiras: a sub-representação de pessoas negras (pretos e pardos) e de mulheres. A Emenda Constitucional n.º 111/2021 fará com que os votos em candidatos desses dois grupos à Câmara dos Deputados tenham peso dois no cálculo dos fundos eleitoral e Partidário nas eleições de 2022 a 2030. Uma das dificuldades, no entanto, é evitar que, assim como ocorreu nas últimas eleições, partidos criem mecanismos para driblar as novas regras, atuando pela manutenção dos nomes que já estão no poder.
Em 2020, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) já havia decidido que a distribuição dos recursos e o tempo de propaganda eleitoral em rádio e TV deveriam ser proporcionais ao total de candidatos negros que o partido apresentasse para o pleito. A regra entrou em vigor nas eleições municipais do mesmo ano, por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), mas, para a pesquisadora associada ao LabGen da Universidade Federal Fluminense Débora Thomé, partidos a sabotaram. O estudo +Representatividade, do qual Débora participou, mostra que, na prática, candidatos de grupos sub-representados não conseguiram utilizar o recurso da forma ideal.
"Esse financiamento nunca chegou, chegou na última semana ou ficou concentrado em candidatos que são mais do interesse de quem controla os partidos", afirmou a pesquisadora. "Você ter acesso ao dinheiro não significa que esse dinheiro chegará a tempo. Foi o que percebemos conversando com os candidatos." Para evitar que isso se repita neste ano, o TSE obrigou os partidos a anteciparem os recursos aos candidatos desses grupos até 19 dias antes da votação.
O professor Cristiano Rodrigues, do Departamento de Ciência Política da UFMG, também considera que a distribuição proporcional de recursos é uma boa medida para viabilizar candidaturas de grupos sub-representados, mas precisa ser aprimorada para obter melhores resultados. "A distribuição proporcional de recursos não garantia esse incentivo, mas a contagem de votos, sim."
Para Rodrigues, enfrentar o problema é importante para aproximar a classe política da realidade do País. "No Brasil temos uma tendência de ter políticos distantes da realidade da população. Isso faz, obviamente, com que haja um conjunto de leis, propostas e atuações a serviço especificamente da realidade desse grupo que está representado. Então, aumentar a diversidade na representação política implicaria uma produção de leis e propostas políticas que se aproximasse mais da realidade da população brasileira."
O cientista político e professor da Universidade da Flórida Andrew Janusz acrescenta outro ponto: a confiança da população nos políticos. Segundo ele, pesquisas mostram que indivíduos que compartilham sua própria identidade racial com a dos políticos eleitos têm atitudes mais positivas em relação ao governo. "Eles são mais propensos a confiar no governo e a acreditar que podem fazer coisas para criar mudanças", afirmou o professor.
Estudo inédito do Núcleo de Justiça Racial da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), em parceria com a Coalizão Negra por Direitos, constatou que, apesar da regra já aplicada em 2020, pouco mudou em relação à representação racial nas câmaras municipais. Entre os eleitos, 53,78% eram brancos; 38,36% eram pardos; 6,17%, pretos; 0,39%, amarelos; e 0,30, indígenas. No total da população brasileira, os brancos são 47,7%, de acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Os pesquisadores compararam os dados do TSE sobre os eleitos em 2020 com as informações populacionais do Censo de 2010. A conclusão foi de que, quanto mais escura a cor da pele, menor é a representação nas câmaras municipais. Além disso, a desigualdade de gênero é explícita.
Homens brancos, grupo com a maior representação, são 44,2% dos vereadores eleitos em 2020, mesmo sendo 22,9% da população do País. Em contraste, apesar de corresponderem a 3,8% da população, mulheres pretas ocupam menos de 1% dos cargos nos legislativos municipais. A intersecção entre as desigualdades de gênero e raça leva à inexistência de vereadoras negras em casas legislativas de 3.184 municípios - mais da metade.
Para a professora Luciana Ramos, coordenadora da nota técnica, o estudo deixou evidente a necessidade de alterar essa pirâmide da desigualdade racial no Legislativo brasileiro. Embora entenda a importância das novas regras para alterar esse cenário, Luciana afirmou que partidos podem criar ferramentas para promover a manutenção de quem já está no poder, deixando de lado os grupos sub-representados.
Segundo ela, as eleições do ano que vem podem levar a um aumento na representação desses grupos, não necessariamente pelas novas regras, mas por meio da demanda social que tem surgido pela luta antirracista. "O que fará a diferença é a incidência dos movimentos negros. Mas não pelas novas regras. Não o que vem de cima, mas pelo que vem de baixo."
Os pesquisadores também apontam que as câmaras municipais são as que costumam receber políticos novatos. Dessa forma, na esfera federal a desigualdade racial é ainda maior. Na Câmara dos Deputados, 75% dos congressistas são brancos; 20%, pardos; 4,5%, negros; 0,3%, amarelos; e 0,2%, indígenas. No Senado, brancos são 80%; pardos somam 17%; e pretos, 3%.
Aplicando o cálculo de proporcionalidade - que compara as participações desses grupos raciais na população e entre os eleitos para vereador -, a pesquisa indicou a sobrerrepresentação de homens de todas as raças, com exceção dos amarelos. Homens brancos têm a maior sobrerrepresentação (1,93); seguidos por pardos (1,54); pretos (1,35); indígenas (1,25); e amarelos (0,6).
Entre as vereadoras eleitas, todas as raças são sub-representadas se comparadas com a sua respectiva distribuição populacional. Mulheres amarelas (0,13); pretas (0,22); pardas (0,24); indígenas (0,25); e brancas (0,38). Em 2016, as proporções eram ainda maiores do que nas eleições de 2020: amarelas (0,11), pretas (0,15), indígenas (0,2), pardas (0,2), brancas (0,33).
O relatório afirma que esse diagnóstico parte de um "processo histórico de exclusão sistemática de pessoas negras dos mais variados espaços da vida pública, particularmente dos postos de poder e de tomada de decisão política". E expõe o tamanho do desafio enfrentado pelo TSE na tentativa de inserção de grupos sub-representados nas casas legislativas. Os pesquisadores observaram que a sub-representação é ainda maior porque os dados populacionais utilizados são do Censo de 2010. O IBGE deveria ter atualizado os números em 2020, mas a pesquisa foi adiada para este ano.