A professora, ambientalista e mulher trans Duda Salabert entrou para a história da política mineira em 2020, ao se tornar a pessoa que mais recebeu votos para vereador na história de Belo Horizonte. Antes, em 2018, ela já havia se tornado a primeira pessoa trans a se candidatar ao Senado. Nas eleições deste ano, Duda é candidata a deputada federal por Minas Gerais pelo PDT (Partido Democrático Trabalhista).
Em entrevista à DW, Duda Salabert afirma que violências contra minorias, como transfobia, LGBTfobia, machismo e racismo, são violências que estruturam a sociedade brasileira. "Se queremos construir uma sociedade democrática de fato, temos que começar com uma cultura educacional que enfrente essa estrutura de violência e ódio", diz a candidata.
E de violência Duda entende: em 2020, a escola onde ela dava aulas de literatura recebeu ameaças de que o local seria transformado em um "mar de sangue" caso ela não fosse demitida. Neste ano, os ataques se intensificaram, e a candidata faz campanha eleitoral protegida por escolta armada. "Fizeram um site com formas de me matar. Ameaçam estuprar a minha filha de 3 anos", conta.
Na entrevista a seguir, Duda também fala sobre a importância de incluir pessoas trans no debate político como "forma de alargar a democracia", apresenta a pauta ambiental como um dos pontos centrais do seu projeto de governo e fala sobre o modelo minerador adotado no estado mineiro.
DW: Qual a sua percepção da violência política nas eleições de 2022 em relação às de 2018, quando você concorreu ao Senado?
Duda Salabert: A campanha eleitoral de 2022 está sendo uma das mais violentas de todos os tempos. As células neonazistas aumentaram consideravelmente no contexto do governo Bolsonaro.
Você está andando com escolta armada nesta campanha eleitoral. Quando as ameaças de morte começaram?
Na verdade, o nosso corpo já é um alvo ambulante, né? Mas a primeira ameaça formal de grupos neonazistas que recebi aconteceu após eu ser eleita vereadora [em 2020]. Recebi mensagens de que iriam me matar e transformar a escola onde eu dava aulas em um "mar de sangue". Também enviaram mensagens para os donos da escola e para alguns colegas professores dizendo o mesmo, que se eu não fosse demitida a escola teria um "mar de sangue", e eu acabei sendo demitida.
Este ano, as ameaças voltaram por meio de e-mails com assinaturas nazistas. As mensagens dizem que o primeiro passo foi fazer eu perder meu emprego, e o segundo será me matar. Fizeram um site com formas de me matar. Ameaçam estuprar a minha filha de 3 anos. Eu denunciei as ameaças, e elas estão sendo investigadas. Tenho que andar com carro blindado e escolta armada.
Você contou em entrevistas passadas que, nas eleições de 2018, os filhos do presidente Jair Bolsonaro debocharam na internet da sua campanha ao Senado, o que gerou centenas de mensagens de ódio nas suas redes sociais. O episódio resultou em alguma ação contra os irmãos Bolsonaro?
Não aconteceu nada com eles [irmãos Bolsonaro], o que mostra que a violência política e de gênerono país é debatida de forma tímida.
A exemplo do assassinato da vereadora Marielle Franco, você teme que possa acontecer algo contra a sua vida?
Sem dúvida, temo. Independente das ameaças que recebo nessas eleições, moro no país que mais mata transexuais e travestis no planeta. Mas já dizia Gal Costa naquela música que ela cantava na ditadura: "É preciso estar atento e forte. Não temos tempo de temer a morte".
Por falar em violência de gênero, em abril, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu que a Lei Maria da Penha se aplica às mulheres trans. É um caminho para o Estado começar a combater a transfobia?
O processo de construção da cidadania e dignidade no Brasil sempre foi a conta-gotas para os grupos historicamente excluídos. Um exemplo é o que aconteceu com os negros após a escravidão, foram raras as políticas públicas construídas para essa população. Assim tem sido hoje com travestis e transexuais.
A questão da inclusão na Lei Maria da Penha é um avanço, é importante, mas ainda é algo muito distante para a comunidade trans, em que a violência geralmente acontece em terrenos baldios, de madrugada, em carros apertados, etc. Às pessoas trans é negado até mesmo o afeto, sobretudo o afeto público. Basta lembrar que o jogador Ronaldo teve que explicar no Fantástico por que transou com travestis e ele se justificou dizendo que usava muita droga na época.
Quase dez anos depois, esse tema voltou em uma entrevista dele com o Pedro Bial…Tudo isso para dizer que a Lei Maria da Penha, por mais importante que seja, ainda é muito distante da nossa realidade [trans e travestis].
Apenas 4% das pessoas trans e travestis estão no mercado formal de trabalho, e 90% dessa população recorre à prostituição como fonte primária de renda, segundo dados de 2022 da Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil. O Estado pode mudar essa realidade?
Precisamos de políticas públicas voltadas para empregabilidade, mas o problema é muito mais complexo e profundo. A exclusão de pessoas trans do mercado de trabalho se deve ao preconceito estruturante que há na sociedade, mas não somente. Antes de discutir empregabilidade, por exemplo, temos que falar do projeto educacional no país.
O preconceito contra pessoas transexuais começa nas escolas, segundo um dado que mostra que 91% das travestis e trans de Belo Horizonte não concluíram o ensino médio. Isso mostra que o projeto educacional que está em curso no Brasil é, muitas vezes, mais uma ferramenta de exclusão e violência contra transexuais. Há que se discutir também a construção de uma consciência crítica que reconheça a diversidade como um dado da própria natureza, e não como algo a ser combatido.
Falar de diversidade e gênero nas escolas ainda é algo que incomoda muito um setor da sociedade, não?
O que acontece é que a transfobia e a LGBTfobia, assim como o machismo, o racismo e o capacitismo, são violências estruturantes do país e fazem parte das instituições sociais. Por isso, se queremos construir uma sociedade democrática de fato, temos que começar com uma cultura educacional que enfrente essa estrutura de violência e ódio.
Diante de um cenário desafiador para a comunidade trans, o que explica Duda Salabert ter sido a vereadora mais votada da história de Belo Horizonte?
Múltiplos fatores…O primeiro é que nós já tínhamos há mais de 10 anos a construção de projetos sociais para além das pautas da comunidade trans. Não nos limitamos a debater somente a construção de uma dignidade para trans no Brasil. Eu também sou professora há mais de 20 anos, e na minha candidatura discutimos o fim dos vestibulares. No meio ambiente, discutimos o impacto da mineração em Minas Gerais.
Fazemos um debate político estruturante que reconhece que o debate feito por pessoas trans é uma forma de alargar a democracia. A diversidade na democracia não deve ser só de partidos, mas também de corpos, identidades e ideologias.
A agenda ambiental tem destaque no seu programa de governo?
Além de professora, eu sou ambientalista, vegana há mais de dez anos e atuo nos movimentos de defesa socioambientais. Nós somos a última geração capaz de frear a crise climática, né? Não há justiça social sem justiça ambiental, assim como não há justiça ambiental sem justiça climática. Então, a questão ambiental tem lugar central no nosso mandato e na nossa política. Defendemos maior rigidez na legislação ambiental e a adequação ao cenário de crise climática.
Também estou fazendo de novo uma campanha sem nenhum "santinho", panfleto ou bandeira, porque, segundo o Tribunal Superior Eleitoral, a quantidade de lixo eleitoral gerado em 2016 daria para produzir 40 milhões de livros! Por isso, nos comprometemos que, a cada voto que recebermos, vamos plantar uma árvore.
É um compromisso formal da sua campanha eleitoral, plantar uma árvore a cada voto recebido nas urnas?
Eu já tinha feito isso na campanha passada, quando recebi quase 40 mil votos [2020]. Quando me tornei vereadora, para cumprir essa promessa, criamos em Belo Horizonte um projeto de ecoalfabetização, que prevê o plantio de quase 50 mil árvores próximas às escolas, envolvendo os estudantes. Durante o plantio, eles também terão aulas de educação climática. Vamos plantar árvores, mas também [incentivar a] consciência ecológica. Agora, nessa campanha, queremos levar o projeto de ecoalfabetização para todo o estado [MG] e todo o país.
Como é levantar a pauta ambiental em um estado que viveu recentes desastres socioambientais causados pela mineração, como os rompimentos das barragens de Brumadinho em 2019, com 270 mortos, e de Mariana em 2015, com 19 mortes?
Lutamos para que Minas Gerais supere a minério-dependência. Lutamos por um projeto de diversificação econômica, valorizando outros modelos de economia. Temos que entender que a mineração não traz riqueza. Se trouxesse, Minas Gerais seria o estado mais rico do mundo, e Sabará seria exemplo de cidade desenvolvida. Na verdade, segundo o IBGE, os municípios que tiveram mineração de ferro no estado são aqueles que têm maior desigualdade socioeconômica.
A mineração em Minas Gerais representa 4% do PIB e 2% dos impostos (dados do Instituto Brasileiro de Mineração, Ibram). A riqueza da mineração não fica nos municípios, vai para o capital internacional, então nós temos que identificar a diversificação econômica que valorize o meio ambiente no estado. Aí, eu pergunto: vale a pena deixar uma região sem água por milhares de anos por causa de 4% do PIB?
Além disso, é possível minerar sem destruir nossos aquíferos, mas o modelo de mineração em Minas Gerais está totalmente em desacordo com as metas climáticas.
Por fim, o Censo 2022 não incluiu perguntas sobre identidade de gênero. Qual o prejuízo disso para o Brasil?
Isso [falta de dados sobre identidade de gênero] dificulta a construção de políticas públicas no enfrentamento à desigualdade social e a violência que há contra nossa identidade e nossos corpos. O primeiro passo para se construir políticas públicas é ter números sobre o problema. Então o Censo, que deveria ser um instrumento de combate à desigualdade, acaba ignorando a nossa realidade e se colocando a serviço do apagamento histórico em relação à comunidade trans.