Em 2024, houve um marco histórico no que diz respeito aos direitos reprodutivos na França. O país se tornou o primeiro em todo mundo a incluir o direito ao aborto em sua Constituição Federal. Já no Brasil, essa agenda ainda passa por desafios e disputas de narrativas jurídicas, muito por conta da influência religiosa nas esferas de poder.
A reportagem do Terra NÓS conversou com advogadas especializadas em questões de gênero e direitos das mulheres, com o objetivo de entender os direitos reprodutivos hoje no Brasil e os motivos pelos quais há obstáculos para sua ampliação.
Segundo Márcia Ribeiro, advogada especialista em direito e processo penal, os direitos reprodutivos “se ancoram no reconhecimento do direito básico de pessoa poder decidir, livre e responsavelmente, a respeito da própria identidade, atividade sexual, prazer e da experimentação do próprio corpo para fins reprodutivos”.
Esses diretos também dão a liberdade de decidir sobre filiação e constituição familiar, de forma livre de discriminação, coerção, violência ou restrição de qualquer natureza.
“Garantem o respeito à autonomia sobre o próprio corpo e a liberdade de viver a própria sexualidade sem discriminação, com acesso à saúde e respaldo do direito de decidir sobre gravidez e contracepção”, acresenta a advogada, que é pesquisadora e também atua no Mapa do Acolhimento – organização que conecta mulheres que sofreram violência a psicólogas e advogadas voluntárias.
O que impede o Brasil de ampliar o debate sobre os direitos reprodutivos?
No entanto, no cenário brasileiro atual, a concretização dos direitos reprodutivos das mulheres têm enfrentado discursos conservadores, o que limita um debate democrático sobre o tema.
De acordo com Ana Paula Braga, advogada que fundou um dos primeiros escritórios de advocacia do Brasil especializados em direitos das mulheres, a sexualidade feminina foi historicamente controlada pelo patriarcado e pelo capitalismo, “que colocam a mulher na posição de meras reprodutoras da espécie, desprovidas de autonomia”.
Na avaliação dela, esse controle sobre o corpo da mulher – se pode ou não ter filho, se pode ou não abortar – é exercido também com o auxílio de religiões, que tratam sexualidade feminina como pecado.
“E quando se misturam opiniões pessoais e religiosas com políticas de Estado, há grande dificuldade em fazer avançar pautas que devolvam a cada mulher o direito de escolher individualmente sobre seu próprio corpo”, diz Ana Paula.
Márcia também cita a influência do conservadorismo religioso na arena pública brasileira e os efeitos dessa intervenção nos direitos de mulheres, sobretudo no campo da reprodução e do livre exercício da sexualidade. Além disso, a presença da religião nas esferas da política representativa dificulta o reconhecimento da diversidade cultural e social.
“A grande resistência que se apresenta nesse contexto, reside exatamente no desejo de influência política de alguns grupos religiosos nas instâncias deliberativas de poder. A penetração de agentes religiosos em todos os níveis do Estado cria forças morais persuasivas”, analisa.
De acordo com a analista jurídica, para que haja algum tipo de avanço nesse sentido, é preciso redefinição e reformulação da agenda de direitos humanos, sendo primordial agregar os direitos sexuais e reprodutivos nesses debates, indo ao encontro dos parâmetros internacionais e constitucionais.
“Além disso, há que se comprometer com uma postura democrática e laica, de forma que os paradigmas fundamentalistas religiosos não sirvam como instrumentos de influência política no Estado. Esse é um dos grandes desafios que se impõem”, reitera Márcia.
Principais atos normativos que marcam a inclusão dos direitos reprodutivos no mundo:
- Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), de 1979;
- Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento das Nações Unidas de 1994, realizada na cidade do Cairo, no Egito;
- IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Pequim, em 1995 – onde foram reafirmados os acordos estabelecidos no Cairo e avançou na definição dos direitos reprodutivos e dos direitos sexuais como direitos humanos.
E no Brasil:
- Constituição Federal, no artigo 226, §7;
- Lei de Planejamento Familiar (Lei 9.263/1996);
- Lei da Laqueadura (Lei 14.443/2022);
- Código Penal – que de um lado protege as mulheres da violência sexual, mas também as penaliza pelo aborto;
- Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, ocorrida em Belém do Pará, em 1994, entre outros atos normativos.
Ana El Kadri, advogada especializada em atendimento às mulheres em situação de violência, trouxe um exemplo importante da possibilidade de avanços nos direitos reprodutivos e sexuais por meio da esfera jurídica.
“Existem casos em que o Poder Judiciário foi palco para o avanço de direitos, considerando por exemplo a previsão de abortamento legal em casos de fetos anencéfalos, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54”, exemplifica a diretora de programas no Mapa do Acolhimento.
O que a garantia dos direitos reprodutivos representa para as mulheres?
Para as advogadas, a garantia dos direitos reprodutivos representa para as mulheres a possibilidade de viver uma vida livre de violências e autonomia sobre os seus corpos.
“As gravidezes em decorrência de estupros maritais [que ocorrem dentro de um relacionamento], que aumentam a dependência financeira e a contração de IST's e resulta em diversos riscos à saúde são alguns dos casos que já ocorreram e poderiam ter sido mitigados pela garantia de direitos reprodutivos”, enfatiza Ana El Kadri.
Os direitos reprodutivos se desdobram desde a possibilidade de realizar um aborto legal, mas também ao acesso a um absorvente íntimo, complementa ela. “Existe um espectro grande que limita a vida das mulheres em diversos âmbitos para além da saúde como o acesso à educação e a renda.”
Outro exemplo, segundo Ana Paula, é que a normativa “garante às mulheres o direito de ter educação sexual para conhecer e ter acesso a métodos contraceptivos, e de não ser presa quando eles falharem”. “De ser livre de toda forma de violência sexual, obstétrica e institucional”, complementa.
“A garantia de direitos reprodutivos também é uma forma de impor igualdade às mulheres em relação aos homens, porque garante a elas o direito de escolher se quer ser mãe, quando quer, quantos filhos quer ter, de que forma deseja concebê-los, pari-los e criá-los.”
Importante ressaltar que os direitos reprodutivos e sexuais que temos até então são resultado da luta histórica do movimento de mulheres no Brasil.
“E quando estamos falando sobre o aborto, não há qualquer avanço que não seja conquistado sem que a sociedade civil organizada e os movimentos sociais de base estejam presentes para tensionar as intituições e demandarem progresso”, finaliza Ana El Kadri.