Pensar no povo negro é sempre uma viagem. Eu sempre pensei sobre como a relação existente entre nós negros e a ancestralidade é uma coisa viva, como as mães, as avós, os avôs, são uma coisa forte e grandiosa na vida do nosso povo, na criação das crianças, no empréstimo de segurança na vida dos jovens, na forma como encaramos os velhos.
Na minha recente passagem pelo Harlem, Nova York, nos EUA, fui chamada de mommy (mãe) por diversas pessoas, homens e mulheres mais jovens, que eu não conhecia, e fui prontamente atendida, pelo simples fato de ser uma idosa negra.
Penso que isso tem a ver com a cosmovisão africana, onde a Aldeia é a família e onde se pensa e se resolve todas as questões de forma coletiva. Da religiosidade aos estudos, do enterro ao casamento, da enfermidade aos cuidados com a infância, a velhice.
E na cosmovisão africana o sagrado tem um lugar especial, e o sagrado não é tão somente o culto as orixás, como também o cuidado com o corpo, o território, com a natureza, os rios, o mar, as árvores, os animais e os alimentos.
Na sacralização das árvores o baobá tem um papel especial porque é considerada sagrada para muitos povos, porque é a árvore da memória, é embaixo de sua sombra que as decisões da Aldeia são tomadas, é a árvore que atravessa secas severas guardando água no seu interior, porque pode viver durante milênios em condições muito adversas.
Em Rio Claro, interior de São Paulo, uma muda de baobá foi cedida por uma militante do movimento negro da cidade para ser plantada num espaço público. Ela abdicou de ter o baobá plantado em seu quintal para que a coletividade pudesse ser beneficiada com a sombra de um baobá.
No dia 6 de novembro de 2021, em uma cerimônia pública alusiva à Consciência Negra, com a presença de autoridades municipais, aconteceu o plantio de uma muda de Baobá no Centro Cultural Roberto Palmari, trazida de Moçambique pelo multiartista TC, da Casa de Cultura Tainá.
Durante este tempo Tati, do Tambu, a militante que cederá a muda visitava o baobá e foi surpreendida quando em 9 de junho deste ano encontrou a muda cortada. Obviamente veio a decepção, a frustração de perder a ligação ancestral, mas não parou por aí, a prefeitura disse que não era necessário fazer drama, pois era só uma árvore que fora cortado e não uma floresta inteira.
Aqui vai um ensinamento da cosmovisão africana: quando morre um ancião, uma biblioteca inteira se vai e quando morre uma árvore écomo se perdêssemos uma floresta.
A Secretaria de Cultura de Rio Claro e a Assessoria de Igualdade Racial devem ao menos um pedido de desculpas à população negra e para a militância negra em particular da cidade.
A resistência negra no Brasil, população que passou pela escravização e todas as violências e adversidades que isso causa até hoje, só se explica pela força da ancestralidade na vida desse povo, representada pelo baobá.
*Regina Lúcia dos Santos é coordenadora estadual do Movimento Negro Unificado, em São Paulo.
Nosso direito às memórias