Tática inspirada em grupos conservadores dos EUA mira mulheres que vão a centros de aconselhamento ou consultórios e busca alimentar o sentimento de culpa, diz especialista. Ministra alemã quer lei para coibir a prática.Na tarde de uma sexta-feira nublada e com ventos fortes em fevereiro, representantes da EuroProLife - uma associação cristã europeia contrária ao aborto - começaram lentamente a se reunir em frente ao centro de aconselhamento e planejamento familiar Pro Familia, no bairro de Westend, em Frankfurt, na Alemanha.
Segurando folhas com letras de cânticos e rosários, eles entoavam a oração Ave Maria. Alguns portavam cartazes com imagens de bebês sorridentes ou contendo um pequeno punho cerrado com os slogans "Vidas dos fetos importam" e "Aborto não é solução".
A manifestação foi promovida pelo movimento 40 Days for Life (40 Dias pela Vida, em português), que teve origem no estado americano do Texas, em 2004, e pede que os manifestantes façam as chamadas "vigílias" na parte externa das clínicas de aborto por 40 dias, a partir da quarta-feira de Cinzas para coincidir com a Quaresma.
Os participantes dizem que não querem falar com a imprensa. Alegam que foram anteriormente reportados de maneira injusta e que suas declarações foram erroneamente relatadas. Desejam simplesmente rezar em paz, argumentam.
Condições para abortar
Há nove anos, Claudia Hohmann atua como diretora do centro Pro Familia em Frankfurt. Ela se lembra do dia em que manifestantes apareceram pela primeira vez na normalmente pacata área, próxima à entrada do Jardim Botânico da cidade, em 2017.
"Foi um verdadeiro choque. Tenho certeza de que há mulheres que não são tão afetadas por isso, mas há pessoas que levam [essa experiência] para o aconselhamento e acabam ficando menos abertas a conversar. A situação no lado de fora [do centro] alimenta sentimentos de vergonha e de culpa", diz Hohmann.
Segundo o artigo 218 do Código Penal alemão, o aborto é ilegal, mas é possível até 12 semanas após a concepção se for apresentado um certificado de aconselhamento no mínimo três dias antes do procedimento. Sem esse documento, qualquer mulher que faça um aborto pode ser processada, assim como o médico que realiza o procedimento.
O centro Pro Familia tem filiais em várias cidades da Alemanha e é certificado para emitir os atestados exigidos. Por ano, o escritório em Frankfurt oferece aconselhamento a cerca de 1.700 grávidas.
Hohmann diz que os protestos, além de provocarem impacto psicológico em quem visita o centro - os cânticos e orações dos manifestantes podem ser ouvidos dentro do prédio -, têm afastado mulheres que gostariam de buscar aconselhamento.
"Liberdade de expressão é algo muito bom", disse Hohmann. "Mas apenas aqui, não. [A manifestação] é muito direcionada, e por isso desleal."
Os ativistas chamam os protestos de "vigílias" e, segundo Hohmann, têm o cuidado de se autoconceituar como manifestantes pacíficos que simplesmente expressam uma opinião.
"É claro que ficamos gratos por eles não gritarem conosco ou jogarem objetos em nós, mas essa não é a questão. É uma cordialidade por trás da qual há muita agressividade dirigida às pessoas", diz Hohmann.
Menos clínicas de aborto
De acordo com o Departamento Federal de Estatísticas da Alemanha, cerca de 100 mil abortos são realizados anualmente no país, cerca de 30 mil menos do que os 130.899 registrados em 1996. Em algumas regiões, é difícil encontrar clínicas.
As escolas de medicina nem sempre ensinam o procedimento, e cada vez menos graduados querem trabalhar nessa área. Ao mesmo tempo, médicos que prestam o serviço são muitas vezes mais velhos, inclusive prestes a se aposentar. De 2003 a 2020, o número de clínicas que oferecem serviços de aborto caiu 50% na Alemanha, e são hoje 1.109.
A ginecologista holandesa Gabie Raven ficou intrigada com o crescente número de alemãs que cruzam a fronteira para ter um aborto em suas clínicas na Holanda e decidiu abrir uma filial em Dortmund, no oeste do país, em novembro do ano passado.
Imediatamente, Raven virou alvo de ativistas que a chamaram de "assassina de bebês". O endereço e o número de telefone dela, inclusive, logo foram publicados em sites antiaborto.
"Participei de um programa de TV [para a emissora franco-germânica ARTE] sobre a história do aborto, e acho que os grupos 'Pró-vida' o viram e começaram a dizer que eu sou a médica mais terrível da Alemanha", diz.
"Há um círculo bíblico aqui [na Alemanha], assim como na Holanda, e eles [ativistas] dizem não ter problemas com o aborto, mas sabemos que isso não é verdade. Foi muito difícil encontrar lugares para alugar, acredito que porque queríamos realizar abortos", afirma.
Ligações com grupos dos EUA
Protestos em frente a clínicas de aborto e centros de planejamento familiar são comuns nos Estados Unidos, onde o aborto é uma questão política dominante e altamente partidária. A organização sem fins lucrativos Planned Parenthood, que fornece assistência e aconselhamento em relação à saúde reprodutiva em todo o país, tem até diretrizes em seu site para pacientes sobre como lidar com manifestantes antiaborto.
Embora menos difundidos e menos divulgados do que nos EUA, manifestações antiaborto em clínicas e centros de aconselhamento não são um fenômeno novo na Alemanha. Mas têm aumentado em escala e em intensidade nos últimos anos.
Ulli Jentsch é um jornalista que atua no Centro de Arquivo da Imprensa e Educação Antifascista (apabiz), com sede em Berlim, e pesquisa a extrema direita, o fundamentalismo cristão e o movimento "Pró-Vida" na Alemanha há mais de 20 anos. Ele diz que o movimento antiaborto nos EUA tem sido um modelo para ativistas alemães e europeus pelo menos desde os anos 90.
"Além de tentar copiar táticas ao estilo americano, existem também os contatos", afirma Jentsch, que cita Terrisa Bukovinac, uma famosa ativista antiaborto dos EUA que foi palestrante convidada na manifestação anual antiaborto "Marcha pela Vida", em Berlim, em setembro de 2022.
Durante seu discurso, Bukovinac, que se autodeclara ateia e progressista de esquerda, chamou o aborto de "genocídio global": "É tão surpreendente estar aqui hoje para ser solidária com todos vocês e com as vítimas do complexo industrial global do aborto", disse ela à multidão.
Influência política
De acordo com Jentsch, think tanks de direita nos EUA estão colocando dinheiro e experiência na expansão de organizações ideologicamente alinhadas na Europa e em outras partes do mundo.
O objetivo é incorporar o bem-sucedido "modelo de litígio" dos EUA, que, por meio de experiência jurídica e apoio financeiro, casos polêmicos são levados aos tribunais na esperança de estabelecer um precedente legal muito mais restritivo do que o previsto constitucionalmente.
"Eles são muito ativos e bem financiados, e esse trabalho não seria possível sem o financiamento dos EUA. Eles usam o dinheiro para apoiar certos casos, por exemplo, no Tribunal Europeu de Direitos Humanos, e também têm defendido casos relativos às 'vigílias'. Eles estão em Estrasburgo [sede do Parlamento Europeu], em Bruxelas [sede da União Europeia], presentes onde ocorre a elaboração de políticas, e essa é a sua grande força", argumenta Jentsch.
A Aliança em Defesa da Liberdade (Alliance Defending Freedom, ou ADF) é um grupo cristão conservador de defesa jurídica fundado nos EUA em 1993. Advogados do braço internacional da ADF apoiaram a organizadora do protesto "40 Dias pela Vida", Pavica Vojnovic, em seu processo contra o governo municipal de Pforzheim, depois que a cidade do sul da Alemanha proibiu a reunião de manifestantes em frente ao centro Pro Familia. Vojnovic entrou com uma ação contra a proibição e acabou ganhando o caso no Tribunal Administrativo em Mannheim, em agosto do ano passado.
Quando os protestos começaram na sede do Pro Familia em Frankfurt, em 2017, o Ministério do Interior do estado de Hessen orientou que os manifestantes se reunissem sem que pudessem ser vistos ou ouvidos no centro de aconselhamento. Durante um ano, os manifestantes se postaram na rua mais próxima, a cerca de 100 metros.
O grupo antiaborto EuroProLife recorreu, argumentando que a Constituição alemã garante o direito de reunião pública, liberdade de expressão e religião. A ordem foi anulada em março de 2022, com a alegação de que representava uma "invasão injustificada do direito fundamental à liberdade de reunião" e, com isso, os manifestantes retornaram para a frente do centro.
Ações governamentais
Na semana passada, a ministra da Família, Lisa Paus, defendeu a aprovação de uma lei para evitar que ativistas antiaborto protestem perto das clínicas de aborto e centros de aconselhamento.
"As mulheres devem ter livre acesso aos serviços de aconselhamento e instalações que realizam abortos", disse Paus à rede alemã Redaktionsnetzwerk Deutschland, descrevendo as chamadas "vigílias" como "ataques inaceitáveis à decisão extremamente pessoal das mulheres".
O governo também concordou em criar uma comissão para analisar como o aborto poderia ser regulamentado fora do Código Penal alemão, com vistas à descriminalização.
No prédio do Pro Familia, com vista para onde os manifestantes se reúnem, Claudia Hohmann encara os protestos como parte de uma reação conservadora mais ampla contra a igualdade, os direitos reprodutivos e a liberdade de se viver como quiser.
"Eles [os ativistas] não vão nos frear ou nos intimidar, é claro que não, mas isso [as manifestações] são prejudiciais para o nosso serviço de aconselhamento. Eles são contra tudo o que fazemos aqui, contra a educação sexual, contra o apoio às minorias, contra a liberdade de viver como se quer. Esses são nossos objetivos, e é por isso que [para eles] somos o Anticristo, o inimigo", conclui.