O resgate de trabalhadores domésticos em condições análogas à escravidão tem aumentado, segundo dados do Ministério do Trabalho e Previdência. Em 2021, a pasta registrou 31 casos, maior número desde 2017, quando passaram a ser separados registros dessa modalidade. De um lado, o fato de esses crimes ocorrerem dentro de casa dificulta as denúncias e a fiscalização. De outro, o longo tempo de segregação das ruas que caracteriza esses registros torna mais desafiadora a reinserção social após a liberação das vítimas.
Desde os anos 1940, o Código Penal prevê prisão de 2 a 8 anos para o crime. Quatro elementos podem definir a escravidão contemporânea: trabalho forçado (com cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (cativeiro atrelado a débitos, muitas vezes fraudulentos), condições degradantes (trabalho indigno, que põe em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (que leva ao completo esgotamento).
Em 27 anos de atuação, o grupo especial móvel de fiscalização, que envolve a Subsecretaria de Inspeção do Trabalho da pasta do Trabalho, MPT, Polícia Federal, Ministério Público Federal e Defensoria Pública da União, resgatou 58 mil trabalhadores em fazendas, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para siderurgia, na extração de minérios, na construção civil e até em fábricas, mas poucas vezes atuou no trabalho doméstico, que emprega um contingente estimado como expressivo.
Conforme o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), cerca de 6 milhões de brasileiros dedicam-se a serviços domésticos. Do total, 92% são mulheres - na maioria negras, de escolaridade e renda baixas. Só um de cada quatro tem carteira assinada, o que dificulta a fiscalização. E o Brasil ganhou lei própria para detalhar a jornada e direitos do trabalhador doméstico apenas em 2015.
"Mais de 90% das pessoas resgatadas no Brasil desde 2013 foram homens. Quer dizer que, provavelmente, as formas de exploração do trabalho da mulher têm sido 'invisibilizadas' pela fiscalização. O trabalho escravo doméstico é uma delas", diz a coordenadora nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do MPT, Lys Sobral Cardoso. Segundo os procuradores, mulheres negras estão entre as vítimas mais comuns desse tipo de crime.
Prazeres como tomar sol de manhã, escolher a comida do almoço e tomar café à tarde são novidades para Yolanda Ferreira, de 89 anos, moradora de Peruíbe, litoral de São Paulo. Quando as netas a levam para tomar água de coco na praia, saborear um doce ou sorvete, ela se sente no paraíso.
Por cerca de 50 anos, ela trabalhou para uma família em situação análoga à escravidão, em um prédio de alto padrão no bairro Gonzaga, em Santos. Ficou sem receber salários, era impedida de sair sozinha e foi vítima de abusos físicos e verbais por parte da patroa e de uma das filhas, segundo ação do MPT na Justiça.
Yolanda foi resgatada em setembro de 2020, graças à denúncia de uma nova vizinha, que não entendia por que a empregada do apartamento ao lado, uma idosa negra, mal aparecia no corredor. E, quando saía, era sempre de cabeça baixa, sem responder a seus cumprimentos.
Após o resgate, uma das primeiras vontades da família foi levar Yolanda para conhecer Santos, que ela via só da janela do apartamento. "Levamos na orla da praia, para tomar água de coco. Fomos ao shopping fazer compras e, pelo que ela disse, nunca tinha ido antes", conta a neta Marcella Cunha.
Vida apagada
"Yolanda, o marido e duas filhas foram despejados por falta de pagamento do aluguel, na década de 1970, e ela teve de sair à procura de trabalho. Durante o despejo, perdeu a carteira de identidade. O marido voltou a morar com a mãe dele e levou as filhas, mas a mulher não aceitou Yolanda porque, além de ser negra, tinha sido criada em um orfanato", diz a advogada Marília Schurkim.
Quando bateu à porta de Nirce Simão, a mulher teria a acolhido, dizendo que lhe daria documentos, o que não ocorreu. "Como trabalhou basicamente em troca de comida e cama, nunca conseguiu guardar dinheiro e foi impedida de procurar seus familiares. As filhas achavam que estava morta. Sua vida foi de tal forma anulada que era como se não existisse", afirma Marília.
Viviane Cunha, outra neta, conta que sua mãe, Elaine, morreu em 2015 sem ter reencontrado Yolanda. "Desde que me conheço por gente, ela procurava pela mãe. Sempre vivemos em Santos e nunca tivemos nenhuma pista dela porque simplesmente ela não tinha vida social, celular. Minha mãe dizia sentir que a mãe dela, Yolanda, estava viva. Achávamos que tinha morrido, pois ninguém vive assim, sem dar notícias", diz Viviane. Segundo a família, Elaine chegou a morar em um bairro próximo da região onde a mãe vivia, mas não circulava pelas ruas.
O Estadão visitou Yolanda em seu novo lar, a casa de Viviane, em uma pequena vila residencial, perto do centro de Peruíbe. A neta contou que Yolanda foi diagnosticada com catarata. Os médicos ainda avaliam uma cirurgia. Ela também tem quadro de perda auditiva, que deve ser corrigido com aparelhos. "É tudo da idade", diz a idosa, que completa 90 anos em agosto. Por ouvir mal, Yolanda fala pouco, mas mantém uma expressão serena no rosto marcado pelas rugas.
Sobre a nova rotina, Yolanda conta que os doces e sorvetes são a sua paixão e não faltam em casa. "Ela nunca mais será privada de nada", ressalta Viviane. No dia da visita da reportagem, ela havia acabado de experimentar um pedaço de bolo. "De saúde, estou bem agora", disse a idosa.
O sorriso de Yolanda some apenas quando é pedido para falar do tempo que viveu reclusa. "Meu quarto era pequeninho, escuro, me lembro. Era muito quente." Ela reclama de uma das filhas de Nirce. "Brigava comigo, de vez em quando me batia. Às vezes, ela fazia que ia me bater e me assustava muito", diz Yolanda.
O MPT de Santos entrou com ação trabalhista e a família de Yolanda, com ação de indenização por danos morais contra os herdeiros de Nirce. Em 26 de abril, a juíza Juliana de Moraes, da 2.ª Vara da Justiça do Trabalho, condenou os herdeiros a pagarem R$ 670 mil à vítima.
A decisão manda a família pagar pensão mensal de um salário mínimo (R$ 1.212) e custear integralmente um plano de saúde para a idosa, sob pena de multa diária de R$ 200. Os advogados dos familiares entraram com recurso.
A reportagem entrou em contato com os herdeiros de Nirce e foi orientada a procurar seus advogados. A assessoria de comunicação da Marsaioli Advogados, que defende judicialmente os herdeiros, disse não ter autorização dos clientes para comentar.
Na defesa à Justiça, os acusados alegaram que Yolanda foi acolhida, recebeu salário, mas depois se tornou um membro da família e deixou de trabalhar como doméstica. Já segundo escreveu a juíza, ainda que a patroa tenha dado casa e comida, "a ausência de pagamento de qualquer salário cerceou a possibilidade" de Yolanda seguir outros rumos, "causando situação de dependência econômica forçada, que a constrangeu a permanecer sendo explorada por décadas".
Na defesa, os advogados alegaram que, com o tempo, Nirce e Yolanda passaram a residir sozinhas e em razão da idade avançada de ambas foi contratada uma faxineira, deixando Yolanda de trabalhar como doméstica. A defesa diz que a mulher recebeu salário mínimo mensal enquanto trabalhou como doméstica, tendo o pagamento cessado quando deixou a função. Mesmo assim, sustentaram, o acolhimento pela família foi mantido, em consideração a laços de afeto que teriam surgido com Yolanda ao longo dos anos.
Recomeço
Em novembro de 2020, uma mulher negra, de 46 anos, e que desde os 8 anos vivia em condições análogas a escravidão, foi resgatada em Patos de Minas (MG). Durante 38 anos ela trabalhou para uma família sem receber salário e em regime de total exclusão social. No processo, Madalena Gordiano conta que bateu na porta da casa de uma professora para pedir comida, pois estava com fome. A mulher se ofereceu para adotá-la e a mãe da menina, que tinha nove filhos, concordou, mas a adoção nunca foi formalizada. Segundo o MPT, Madalena passou a ser empregada da família, sem direito a salário, descanso semanal e qualquer outro benefício.
Depois de 24 anos, a mulher foi trabalhar para o filho da "patroa", um professor universitário, mas as condições não mudaram. Em maio, o MPF denunciou quatro membros da família por manter a mulher em situação análoga à escravidão e, também, por apropriar-se de valores que pertenciam a Madalena. Anteriormente, os termos trabalhistas tinham sido resolvidos por meio de acordo. A apuração na esfera criminal ainda tramita.
As autoridades foram acionadas após vizinhos receberem bilhetes de Madalena pedindo ajuda para comprar sabonetes. Eles suspeitaram do fato de ela, que trabalhava para uma família com bom padrão, não ter dinheiro para itens de higiene pessoal e não poder conversar com as pessoas.
A assistente social Thaís Teófilo, que acolheu Madalena em sua casa, em Uberaba (MG), disse que ela está aprendendo aos poucos a cuidar da própria vida. "Está tentando ter mais autonomia. Já tem aulas com uma professora voluntária e estamos vendo a possibilidade de ela ser incluída em uma classe do EJA (ensino de jovens e adultos)." Quando Madalena começou a trabalhar para a professora, a primeira coisa que ouviu, segundo relata, foi que já estava "muito velha" para ir à escola.
Como parte de acordo feito na Justiça, Madalena recebeu o apartamento e um carro da família para a qual trabalhava, que ainda não foram transferidos para seu nome. Segundo Thaís, ela quer vender o imóvel. Assim que foi resgatada, ela também se negou a voltar para sua família, por entender que a tinham abandonado.
O advogado Brian Epstein Campos, que defende os acusados, disse que a família nega ter praticado qualquer conduta que se assemelhe a essas práticas. E, no entanto, reconheceu ter débitos trabalhistas em relação a Madalena, que já foram objeto de acordo judicial. Já sobre a denúncia apresentada pelo Ministério Público à Justiça criminal, o advogado informou que a família vai provar sua inocência e tudo será esclarecido durante o processo.
Vulneráveis
No Rio, uma mulher de 86 anos foi resgatada de condições análogas às de escravo após 72 anos trabalhando como empregada doméstica para três gerações de uma família. Conforme o Ministério do Trabalho, é a mais longa duração de exploração de uma pessoa em escravidão contemporânea desde que o Brasil criou o sistema de fiscalização, em maio de 1995. A vítima está em abrigo público.
De acordo com o procurador do Trabalho Thiago Gurjão, pessoas resgatadas após longos períodos não raro pedem para voltar ao convívio dos empregadores porque aquela é a única vida que conheceram. Isso tem sido usado por patrões como justificativa de que a relação entre eles era normal e saudável.
Segundo ele, no ordenamento jurídico nacional e nos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, o consentimento da vítima é irrelevante para configurar trabalho escravo. "No trabalho escravo doméstico, o abuso de vulnerabilidade é levado a um extremo que pode dificultar o reconhecimento da condição pelas próprias vítimas e mesmo a atuação dos órgãos de fiscalização", explica.