Deficiência intelectual mobiliza inclusão profissional além da Lei de Cotas

Avanço das contratações de PCD é lento, mas diversidade e ESG estimulam empresas; institutos capacitam e fazem ponte com vagas de empresas como Alfaparf e McDonald's

21 mai 2022 - 05h10

Passados 30 anos da Lei de Cotas (nº 8.213/91), quase 50% das vagas de emprego destinadas a pessoas com deficiência (PCD) estão vazias. A política prevê de 2% a 5% dos postos para esse público nas empresas que têm a partir de cem funcionários. Contudo, preconceito, despreparo de gestores e falta de acessibilidade dificultam o ingresso no mercado de trabalho. A situação pode ser mais complexa para quem tem deficiência intelectual, que abrange diversas condições e pode ser mais subjetiva na identificação.

O radar da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho, que traz dados sobre o cumprimento da legislação, informa o número de PCDs empregadas de acordo com o tipo de deficiência só a partir de 2006. Segundo a classificação de "pessoa com deficiência mental/intelectual", o dado mais recente, de 2019, contempla 36.160 indivíduos empregados em companhias obrigadas a cumprir a lei. Outros 5.408 têm vínculo com empregadores não obrigados.

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A evolução ano a ano é lenta e, majoritariamente, apenas para o cumprimento da lei. Porém, o olhar mais atento das organizações agora pode levar a um cenário diferente no futuro. "Tem empresas que ainda agem tão somente pela questão da Lei de Cotas, mas com o ESG, há empresas de porte maior com setor de diversidade que fomenta esses processos para além da cota e trabalham para evoluir essas carreiras", diz Victor Martinez, supervisor do Serviço de Inclusão Profissional e Longevidade do Instituto Jô Clemente, antiga APAE de São Paulo.

Com foco em pessoas com deficiência intelectual, a instituição tem um programa que conecta esse público ao mercado de trabalho. Desde 2013, aplica a metodologia do Emprego Apoiado, pelo qual já passaram cerca de 6.650 pessoas com deficiência intelectual ou transtorno do espectro autista (TEA). Mais de 3,5 mil foram incluídas no mercado de trabalho.

Além de um emprego como auxiliar de cabeleireiro, Jamille Esteves desenvolveu mais autonomia e habilidades de comunicação.
Além de um emprego como auxiliar de cabeleireiro, Jamille Esteves desenvolveu mais autonomia e habilidades de comunicação.
Foto: Pedro Kirilos/Estadão / Estadão

No mesmo campo de atuação, o Instituto MetaSocial também percebe a demanda diferenciada. "Muitas empresas vêm pela Lei de Cotas, mas muitas passam a não se preocupar mais com a lei, porque compreenderam o ganha-ganha da inclusão", observa Andrea Barbi, educadora social e consultora do serviço de Emprego Apoiado da organização.

Ela comenta que as companhias deixaram de buscar "qualquer pessoa" para investir num perfil específico para um cargo ou função. Algumas que já não são obrigadas pela lei acionam o instituto por "acreditar na diversidade". Mas tanto Andrea quanto Martinez reforçam que a legislação é indispensável para esse processo de inclusão. "Sem a política pública, dificilmente continuaremos a ter os avanços que estamos tendo", ele pontua e acrescenta que o maior desafio é lutar para manter o que já foi conquistado.

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Ponte com o emprego e autonomia

Jamille Esteves, de 25 anos, começou a trabalhar como auxiliar de cabeleireiro por meio do projeto Beleza em Todas as Suas Formas, lançado em 2013 pelo Grupo Alfaparf em parceria com o MetaSocial. "Aprendi a auxiliar as pessoas, recepcionar, cuidar. Eu auxilio a cabeleireira, posiciono cliente ao lavatório", conta a jovem, que tem síndrome de Down e já tinha interesse pela área de beleza.

Mais do que um emprego, ela se desenvolveu pessoalmente. "Tenho mais segurança para lidar com pessoas e, no primeiro salão em que trabalhei, pegava a van e minha mãe acompanhava. Agora, o salão é mais perto de casa e pego condução sozinha", diz. Essa autonomia desenvolvida é parte da metodologia Emprego Apoiado, aplicada pelos dois institutos.

Nesse modelo, a proposta é incluir para capacitar. Primeiro, os jovens são avaliados para confirmar o diagnóstico e medir o nível da condição (leve, moderada, grave ou profunda) segundo o quociente de inteligência. A deficiência intelectual é um quadro de atraso neuropsicomotor, em que habilidades como andar e falar demoram a se desenvolver, explica Victor Martinez. Pessoas com síndrome de Down, TEA ou transtorno do espectro esquizofrênico podem se encaixar na classificação, tendo Q.I. igual ou inferior a 70.

Jamille Esteves, de 25 anos, participa desde 2013 do projeto da Alfaparf e faz cursos de reciclagem periodicamente.
Foto: Pedro Kirilos/Estadão / Estadão

Em seguida, os consultores do programa identificam as habilidades e potencialidades do candidato, bem como as barreiras para alcançar uma vaga no mercado de trabalho. Em paralelo, busca-se nas empresas parceiras uma posição alinhada àquele perfil. O ambiente das companhias, as equipes e gestores onde a pessoa vai trabalhar também são preparados, de modo a fazer adaptações necessárias ao desempenho do novo integrante.

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Após a colocação, os institutos fazem um acompanhamento do profissional. Nesse processo, os consultores notam evolução cognitiva e motora dos jovens, mostrando que a inclusão profissional vai além da mera posição no mercado de trabalho. Nos salões parceiros da Alfaparf, por exemplo, alguns jovens formados como auxiliar se desenvolvem ao ponto de desempenhar funções que exigem mais acurácia, como usar o secador e pintar a raiz do cabelo.

Funções operacionais e níveis de hierarquia

Quando se fala de pessoas com deficiência no mercado de trabalho, é preciso desconstruir a ideia capacitista de que elas estariam fadadas a cargos "menores". Martinez comenta que, num universo pouco distante, era comum ver pessoas com deficiência intelectual apenas em funções operacionais ou deficientes visuais em salas escuras de fotografia ou sendo massagistas, "como se a deficiência trouxesse um dom inato".

"A maioria das colocações para pessoas com deficiência ainda estão em vagas operacionais porque elas não tiveram acesso à educação e ainda têm bastante dificuldade no acesso à qualificação elaborada e adaptada de forma que elas consigam aprender", destaca. "Tudo vai da oportunidade e eliminação das barreiras atitudinais. Tem de desenvolver esse jovem para conhecimento a nível de liderança. Se não desenvolver, ele não vai saber se tem aptidão ou não", acrescenta Andrea.

De acordo com o perfil da pessoa, o Instituto Jô Clemente oferece cursos nas áreas administrativa, comércio e indústria, por exemplo. Já o MetaSocial trabalha com as funções de banhista de pet, atendente de loja, auxiliar de escritório e disponibiliza uma formação em rede social. Outros estão prestes a ser lançados: criador de conteúdo e no ramo de moda. Cabe, posteriormente, às empresas aplicar meios de desenvolver esses profissionais.

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Mais profissionais do que pede a Lei de Cotas

No projeto da Alfaparf, embora a formação seja para auxiliar de cabeleireiro, o nível de desenvolvimento da pessoa e interesse dela vão dizer quais caminhos seguir. E quem não se adapta a uma função pode ir para outros setores. "Tem acompanhamento de psicólogos e psicopedagogas, que muitas vezes identificam outras características e possibilidades para encaixar essas pessoas", comenta Melissa Pagliato, diretora de marketing e comunicação da companhia.

"Às vezes, ela não se adapta no salão pelo barulho, então busca dentro da companhia onde se encaixa melhor. Hoje, tem pessoa alocada na linha de produção na fábrica, no administrativo do centro técnico", exemplifica. Ela destaca que a iniciativa foi construída para levar a pessoas diversas a expertise do grupo em educação e treinamento.

Segundo a diretora, pela lei, a empresa deveria preencher 21 vagas com pessoas com deficiência, mas está com mais de 200 profissionais treinados no mercado. "É muito mais o propósito", ela diz. Iniciado no Brasil, com ações em São Paulo, no Rio de Janeiro, no Sul e Manaus, o projeto foi incorporado pela matriz, na Itália, e exportado para outros países como Guatemala, Irlanda e Portugal.

Na vanguarda do movimento, a Arcos Dorados, detentora do McDonald's, fez as primeiras contratações de PCD por volta de 1981, dez anos antes da Lei de Cotas. No Brasil, a companhia emprega cerca de 1,5 mil pessoas com diferentes tipos e graus de deficiência, das quais 72% têm déficit intelectual e estão em cargos de atendente de restaurante e embaixador da experiência do cliente.

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Parceira do Instituto Jô Clemente, a empresa já incluiu, desde 2013, mais de mil profissionais com deficiência intelectual e autismo nos restaurantes da Grande São Paulo. Internamente, o programa Inclusão Além da Cota busca criar posições de trabalho e ampliar as oportunidades de desenvolvimento de carreira.

"Acreditamos que precisamos oferecer oportunidades para o crescimento profissional desses colaboradores. Como resultado desses esforços, em 2021, cinco oportunidades de promoções para cargos em liderança foram conquistadas por funcionários com deficiência", diz Fábio Sant'Anna, diretor de gente, diversidade e inclusão da divisão brasileira da Arcos Dorados.

Ele explica que as promoções estão ligadas a uma trilha de aprendizagem, capacitação e desenvolvimento e, para cada posição, existem pré-requisitos, planos de sucessão e critérios de avaliação. "Buscamos reconhecer nossos talentos de acordo com seus objetivos pessoais de carreira e sua prontidão para assumir novos desafios. Nesse processo, envolvemos uma equipe multidisciplinar, incluindo profissionais de saúde."

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