Depoimento: "Rejeitada em 16 escolas, minha filha PcD passou na primeira fase da Fuvest"

Mãe de uma adolescente com paralisia cerebral grave, Denise Crispim conta a trajetória marcada por "nãos" para Sofia poder estudar

22 dez 2022 - 05h00
"Eu queria dar o melhor estudo possível para a minha filha, principalmente para ela ter alguma autonomia, vida social e oportunidades de se sustentar no futuro", diz Denise
"Eu queria dar o melhor estudo possível para a minha filha, principalmente para ela ter alguma autonomia, vida social e oportunidades de se sustentar no futuro", diz Denise
Foto: Arquivo Pessoal / Arquivo Pessoal

"Tenho 43 anos, moro em São Paulo, trabalho como diretora de marketing e sou mãe solo da Sofia, de 17 anos. Ela é fruto de uma gestação gemelar e nasceu prematura. A irmã faleceu 40 dias depois do parto. Sofia permaneceu durante muito tempo na UTI e sofreu muitas intercorrências, como cinco sepses. Ela teve uma lesão cerebral que a levou a desenvolver uma paralisia cerebral grave com quadriplegia. É uma condição diferente da lesão medular, pos ela consegue mexer as mãos, mas tem menos força, equilíbrio e domínio. A lesão neurológica também causou uma deficiência visual cortical. Ela enxerga, mas com dificuldade. Se há um buraco na calçada, por exemplo, pode ser que ela não consiga ver.

A infância toda de Sofia foi voltada às terapias de reabilitação e às consultas médicas. A educação, para mim, sempre foi um ponto sensível, uma chance de ter justiça social. Eu queria dar o melhor estudo possível para a minha filha, principalmente para ela ter alguma autonomia, vida social e oportunidades de se sustentar no futuro. Porém, como ela havia sofrido uma lesão importante na área de linguagem, o primeiro prognóstico foi de que não poderia ser alfabetizada. Sempre fui teimosa e dizia para quem quisesse ouvir: ela pode, sim!

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Conseguir uma creche não foi tão difícil, mas a passagem para a Educação Infantil começou a apresentar os primeiros problemas. Sofia passou a usar cadeira de rodas entre os três e quatro anos de idade e as desculpas que ouvi das escolas nessa época diziam que não havia 'estrutura arquitetônica' para acomodá-la.

Após visitar seis instituições, consegui matriculá-la na Educação Infantil. Ela teve um desempenho ótimo, foi alfabetizada aos cinco anos de idade e fez o papel de oradora da turma. No entanto, o processo de transição para o Ensino Fundamental foi brutal. As negativas eram tão violentas e as respostas tão agressivas que tive de parar de levar a Sofia junto comigo nas visitas. Em uma escola ela precisou fazer uma espécie de provinha para entrar e passou, mas a diretora me ligou e disse: 'Sua filha passou, mas não a quero aqui na escola. Se ela ficar vai ser humilhada, não vai ter assistência para nada e vai acabar pedindo para sair'.

Na época ainda não existia a Lei Brasileira de Inclusão, então esse tipo de recusa não tinha consequências. Outra escola avisou que 'até aceitava' a minha filha, mas cobraria uma taxa de  R$ 10 mil reais. 

"Fiquei feliz e muito surpresa, não achava que ia passar", fala Sofia
Foto: Arquivo Pessoal / Arquivo Pessoal

Ao todo, percorri 12 instituições e acabei desistindo de matriculá-la numa escola particular. Eram muitos obstáculos nos forçando a desistir, mas eu jamais pensei em desistir. Acredita que uma escola pediu um comprovante assinado por um médico de que a minha filha NUNCA teria problemas de saúde na escola? Como garantir isso, independentemente ou não das deficiências? Tanto eu quanto a Sofia sentimos o impacto dessas rejeições até hoje. A impressão é que ela tinha sempre que provar que era boa o suficiente para o lugar, sabe?

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Na escola pública enfrentamos todo o tipo de dificuldade, pois a estrutura, no Brasil, de modo geral, é precária. Do papel branco até a tinta para a impressão dos materiais nas letras grandes próprias para a Sofia enxergar, tudo era difícil. Não tinha um professor de apoio, faltava material, entre outras questões.

Para matriculá-la no Ensino Médio foi outra batalha, mas a Lei Brasileira de Inclusão já tinha sido aprovada. Então, revisitei as mesmas escolas de antes e, dessa vez, ouvi quatro 'nãos'. A maioria disse que iria tentar acolher a minha filha. Enfim, consegui a escola particular que tanto queria para a Sofia cursar o Fundamental II. Ela sempre foi uma ótima aluna, muito aplicada, e mesmo com a pandemia seu desempenho não foi comprometido. Ela estudou remotamente por um bom tempo, por conta das dificuldades motoras e respiratórias, e em 2021 prestou o Enem para saber como funciona e também testar questões de acessibilidade, como o apoio de uma pessoa leitora para ler as questões para ela.

Ela acabou de concluir o segundo ano do Ensino Médio e decidiu prestar a Fuvest pela mesma razão. Sofia fez a prova para uma vaga em Gestão de Políticas Públicas, sem grandes expectativas, e ficou muito contente em passar para a segunda fase.

(Sofia entra na conversa e diz: "Fiquei feliz e muito surpresa, não achava que ia passar. Devo prestar novamente em 2023").

Fiquei tão feliz que decidi compartilhar no Twitter que, após ser recusada 16 vezes por escolas, minha filha tinha sido aprovada para a segunda fase na Fuvest. Meu tuíte viralizou e recebi comentários de todo o tipo. Minha intenção foi mostrar que ninguém tem o direito de duvidar de uma pessoa com deficiência. Não se trata de meritocracia. Minha filha conseguiu esse êxito, mesmo sem poder cursar agora, mas quantos jovens ficaram e ficam pelo caminho? Não é questão de se dedicar ou não, mas de mudar um sistema que não permite o acesso. Essa desigualdade de condições é desumana. Nenhuma pessoa com deficência deveria se cansar, como a minha filha se cansou, de provar que merece estudar."

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Fonte: Redação Nós
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