Quando Carla Cristina Ferreira Rodrigues soube, em 2021, que havia sido aprovada no processo seletivo do programa Mais Médicos para atuar em unidades de saúde dentro do território Yanomami, achava que estava preparada para todos os desafios logísticos e profissionais que enfrentaria.
Graduada em 2016, a médica de 34 anos decidiu que faria a sua carreira atendendo populações negligenciadas. Passar ao menos 15 dias seguidos por mês dentro da floresta, sem cama nem banheiro e com escassez de recursos para o tratamento dos pacientes - condições que afastam a maioria dos médicos do trabalho em territórios indígenas - já era esperado por Carla.
"Eu fui preparada para o pior cenário, ou seja, se eu não tivesse onde dormir, onde comer. Fiz uma 'mochila consultório', com alguns equipamentos e itens de sobrevivência", contou ela ao Estadão.
Até então, Carla atuava como médica em um posto dentro de uma favela não pacificada no Rio, mas queria atender populações ainda mais vulneráveis e isoladas, "onde os médicos não costumam chegar", por isso decidiu se inscrever para uma vaga no Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEI-Y).
Mesmo preparada para as dificuldades, Carla deixou o trabalho onze meses depois - e foi uma das que mais durou no cargo. Outros dois colegas seus, que entraram na mesma data, pediram demissão com três e seis meses de atuação, conta ela.
O medo de morrer e a sensação de impotência por não poder salvar seus pacientes fez a médica desistir momentaneamente do que considerava uma missão. "Eu não conseguia dormir quando estava lá. Dormia na rede com um facão. Nas aldeias próximas do garimpo, havia violência dos garimpeiros e dos indígenas, que eram cooptados pelo garimpo. Víamos tiroteios. Em um deles, começaram a atirar mirando o polo base de saúde. Tivemos que nos esconder no banheiro e pedir por resgate", afirmou.
O relato de Carla mostra por que a fixação de médicos nesses territórios tornou-se mais difícil nos últimos anos. Historicamente, poucos profissionais topam passar 15 dias de cada mês dentro da floresta, isolados, longe de suas famílias, sem condições dignas de alojamento nem estrutura mínima para atender os pacientes.
Nos últimos anos, porém, com o avanço do garimpo e o enfraquecimento das políticas de saúde indígena, as condições de trabalho ficaram ainda mais precárias e a insegurança aumentou na região.
"Quando cheguei, havia nove médicos no território Yanomami, todos intercambistas do Mais Médicos que não tinham revalidado o diploma e, por isso, não podiam atuar fora do programa. A maioria fica lá porque não têm outra opção de trabalho. Eu e os dois colegas que chegamos na mesma data tínhamos nos formado no Brasil. Quando chegamos ao DSEI, sentíamos que os colegas olhavam estranho, como se não entendessem como alguém podia querer trabalhar lá. Era um clima hostil", conta.
Quando passou a atender dentro da terra indígena, Carla encontrou uma situação de completa escassez. Faltavam itens básicos, como luvas, dipirona e soro. "Os gestores sempre falavam que mandariam (os insumos), mas a gente ia para o atendimento e não tinham enviado. Depois de um tempo, comecei a separar R$ 600 do meu salário todo mês para comprar e levar alguns remédios e insumos básicos", conta.
Sem equipe, médica arrastou paciente por 1 km até helicóptero de resgate
Os momentos mais difíceis, conta Carla, aconteciam quando essa escassez e precariedade se traduziam em mortes de pacientes. Foi no DSEI Yanomami que a médica perdeu a primeira paciente criança. "Era uma bebê de quatro meses com problemas respiratórios. Fiz o que pude, mas não tinha oxigênio, não tinha maca, não tinha nada", diz.
Em outro episódio, a médica foi acionada para ir até uma área mais afastada do território fazer o resgate de um indígena ferido. A terra Yanomami tem cerca de 370 aldeias, 37 polos base de saúde e mais de 70 Unidades Básicas de Saúde Indígenas. Os deslocamentos entre unidades costumam ser feitos via aérea e demoram cerca de 30 minutos. O trajeto até Boa Vista dura cerca de duas horas. No resgate daquele dia, a médica foi sozinha apenas com o piloto do helicóptero e, ao chegar ao local, encontrou o paciente desacordado, com um ferimento grave na cabeça feito por um facão e hemorragia.
"O piloto não podia desligar o helicóptero senão demoraria horas para religar e poder decolar. Não tinha ninguém para me ajudar a carregar. Coloquei o paciente numa rede e fui puxando por um quilômetro até o helicóptero. Depois descobri que a comunidade já havia acionado o resgate há horas e só haviam me enviado depois de muito tempo. Quando ele chegou à cidade, também demorou para conseguir uma vaga de UTI e soube depois ele acabou morrendo. Era uma grande angústia ver seu paciente adoecer e morrer e você não poder fazer nada", conta.
A dificuldade para fazer remoções para hospitais era um problema frequente. "O DSEI fazia contratos com empresas de táxi aéreo e contratavam um número de horas de voo para o ano. Quando chegava em outubro, geralmente essas horas acabavam e a gente não tinha nenhuma previsibilidade. Chamávamos o resgate e demorava. Às vezes demorava dias para conseguirmos sair da terra indígena quando acabava nossa escala", conta.
Carla sonha em voltar a atender os Yanomami e têm esperança de que, com as ações anunciadas pelo governo federal nas últimas semanas, as condições de trabalho melhorem e os riscos para os profissionais diminuam.
"Espero que agora os gestores façam o trabalho que acredito, que realmente se preocupem com os indígenas. Os Yanomami são um povo muito diferente do que estamos vendo nas notícias. É um povo forte, guerreiro, com uma ligação forte com a natureza e com quem aprendi muitas coisas. É preciso, em primeiro lugar, recuperar a dignidade dos Yanomami."