Doutora Honoris Causa: 'Sueli Carneiro é uma rigorosa intérprete do Brasil'

A filósofa, escritora e ativista tem uma produção intelectual extensa voltada para relações raciais e de gênero na sociedade brasileira

22 mar 2022 - 15h13
Imagem da filósofa Sueli Carneiro, que é uma mulher negra.
Imagem da filósofa Sueli Carneiro, que é uma mulher negra.
Foto: Imagem: Instituto Ibirapitanga / Alma Preta

Uma das maiores intelectuais do Brasil e referência histórica do movimento negro, a filósofa, escritora e ativista Sueli Carneiro é a primeira mulher negra a ter título de 'Doutora Honoris Causa' da Universidade de Brasília (UnB).

A decisão foi tomada pelo Conselho Universitário da universidade (Consuni) na última sexta-feira (18). 'Honoris causa' é uma expressão em latim que significa 'por causa de honra'. Utilizada atualmente como um título de honra, é o mais importante concedido pela universidade e atribuído a pessoas nacionais ou estrangeiras de grande destaque ou importância por sua contribuição à cultura, à educação ou outras áreas da humanidade.

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O filósofo, professor de Filosofia e Bioética da UnB Wanderson Flor foi o responsável, junto à professora Vanessa Castro, pela escrita do memorial e do pedido para a honraria concedida à filósofa Sueli Carneiro, que foi realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da UnB.

De acordo com o professor, a filósofa foi escolhida por suas profundas contribuições para o Brasil em suas dimensões política e intelectual articuladas. A filósofa é conhecida por seu ativismo no movimento antirracista e também por sua extensa produção intelectual voltada para relações raciais e de gênero na sociedade brasileira.

A outorga do título de 'Doutora Honoris Causa' a Sueli Carneiro foi aprovada por aclamação no Conselho Universitário da UnB.

"Sueli é uma marca de um pensamento rigoroso e de um engajamento sem concessões em torno do enfrentamento ao racismo, ao patriarcado e a outras formas de opressão. Ela, no movimento negro, soma-se ao coro de intelectuais que não apenas querem mudar a realidade social de nosso país, mas também oferecer outras categorias analíticas por meio das quais possamos entender a história brasileira", explica Wanderson Flor.

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"Entre esquerda e direita, continuo sendo preta"

Sueli Carneiro, à esquerda, com advogado e ativista Bryan Stevenson e representantes do Movimento Negro de SP em 1991 na sede do Geledés | Crédito: Jornal do MNU N°19

Aparecida Sueli Carneiro Jacoel nasceu em São Paulo em 1950. Nos anos de 1971, ela ingressou no curso de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) e é nesse ambiente, vivenciado durante a ditadura militar, entre 1971 e 1980 que a filósofa se aproxima dos movimentos negros e também feminista. Posteriormente, também na USP, Sueli obteve o título de Doutora em Educação.

Aos 71 anos de idade, a escritora constrói reflexão teórica e ativismo pela população negra em seus mais de 150 artigos publicados em jornais, revistas e livros, sendo considerada uma das mais relevantes pensadoras do feminismo negro no Brasil.

De acordo com a Enciclopédia de Antropologia, do Departamento de Antropologia da USP, a militância política de Sueli Carneiro iniciou-se no Centro de Cultura e Arte Negra (Cecan), uma das principais organizações do movimento negro da cidade de São Paulo que foi fundada em 1971 pela produtora e atriz Thereza Santos e pelo sociólogo Eduardo de Oliveira.

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A entrada da filósofa no Cecan corresponde com o período em que a entidade coloca a educação como foco maior de atenção, voltando-se mais para a juventude negra. Em 1981,o centro encerra suas atividades, mas não sem antes fortalecer as bases de outros movimentos políticos e negros da capital paulista.

Em 1983, o governo de São Paulo criou o Conselho Estadual da Condição Feminina, composto por 32 mulheres brancas, sem nenhuma mulher negra. Sueli Carneiro foi uma das lideranças que reivindicou a participação de uma representante negra no Conselho.

"Encontramos em Sueli um exemplo de ativista, engajada em ações concretas de enfrentamento às violências e desigualdades causadas e informadas pelas estruturas opressivas racializadas e generificadas em nosso país; de intelectual, que desde seu ativismo, pensa o Brasil; e de cidadã comprometida com uma sociedade menos opressiva, menos violenta e discriminatória", pontua o professor Wanderson Flor.

Em 1988, a filósofa fundou o Geledés - Instituto da Mulher Negra, a primeira organização negra e feminista independente de São Paulo, que se posiciona em defesa das mulheres negras, buscando combater desigualdades de gênero e raça e fortalecer a autonomia diante de um momento em que as pautas feministas eram vistas sobretudo pela ótica de mulheres brancas.

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O nome Geledés foi escolhido porque é originalmente uma forma de sociedade secreta feminina de caráter religioso presente nas comunidades tradicionais iorubá, portanto, é um forma de culto ao poder feminino.

Em 1990, a filósofa criou no Instituto um programa de saúde mental e física destinado às mulheres negras, único brasileiro de orientação na área de saúde específico para esse grupo.

"Para o movimento negro e para a história do Brasil, encontramos em Sueli uma rigorosa intérprete do Brasil e uma pujante ativista em prol da justiça social", destaca o professor Wanderson.

A escritora já ganhou uma série de prêmios e homenagens, como o Diploma Mulher-Cidadã Bertha Lutz, recebido em 2003, como homenagem por sua atuação na defesa dos direitos femininos. Em 2017, também foi ganhadora do Prêmio Itaú Cultural.

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"Somos seres humanos como os demais, com diversas visões políticas e ideológicas. Eu, por exemplo, entre esquerda e direita, continuo sendo preta", é uma das frases ditas por Sueli Carneiro na edição número 35 da revista 'Caros Amigos', de fevereiro de 2000, em que sintetiza o lugar político fundamental para o movimento negro no Brasil.

No livro 'Continuo preta: a vida de Sueli Carneiro' a jornalista Bianca Santana traça a biografia e a trajetória política de importância da filósofa, que trouxe de forma central em suas produções o protagonismo das mulheres negras e teve atuação essencial para inserir gênero e raça na agenda pública.

"Nós, mulheres negras, somos a vanguarda do movimento feminista nesse país; nós, povo negro, somos a vanguarda das lutas sociais deste país porque somos os que sempre ficaram para trás, aquelas e aqueles para os quais nunca houve um projeto real e efetivo de integração social. Doravante, nada mais será possível sem nós", explicou Sueli Carneiro, em uma de suas raras entrevistas, na Revista Cult.

Leia mais: 'Continuo Preta': Livro sobre a vida de Sueli Carneiro tem lançamento online

Entre Abdias, Milton e Nelson

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De acordo com o professor Wanderson Flor, a Universidade é um lugar ainda muito racista e machista. Na lista de títulos de doutor honoris causa concedidos pela UnB, ao longo de quase sessenta anos, foram entregues até agora 51 títulos.

Apenas quatro foram para pessoas negras - Nelson Mandela em 1990, Milton Santos em 1999 e Abdias do Nascimento, em 2006 -, uma pessoa indígena - Ailton Krenak, em 2021 - e cinco para mulheres brancas - Carolina Bori e Lygia Fagundes Telles em 2000, Michelle Bachelet em 2006, Enilde Faulsch em 2017 e Marilena Chauí em 2018.

Após a aprovação pelo Conselho Universitário para o título concedido a Sueli Carneiro, haverá o cerimonial de entrega oficial, que ainda será programado.

"É um pequeno e tímido passo em direção ao reconhecimento de que os sujeitos da história não são apenas homens e brancos. É, ao mesmo tempo um gesto de honraria para Sueli Carneiro, mas, sobretudo, um gesto de agradecimento da própria universidade que deve a Sueli ter aprendido um desses caminhos de ser mais plural. Por isso, esse título é, embora direcionado para Sueli, um presente que ganha a própria UnB", finaliza Wanderson.

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