Apesar dos avanços legais, as mulheres com deficiência ainda enfrentam violações de direitos humanos, como violência doméstica e sexual.
Apesar dos avanços nos últimos anos em relação aos direitos de pessoas com deficiência, como a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, esse grupo ainda enfrenta uma clara violação de direitos humanos, principalmente as mulheres. Elas são as que mais sofrem violências em todos os grupos de deficiência em comparação com os homens, segundo o Atlas da Violência 2024.
No Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência, celebrado neste sábado, 21, Patrícia Lorete, dona do perfil Janela da Patty no Instagram e especialista em acessibilidade, diversidade e inclusão com foco em pessoas com deficiência, fala sobre fatores de vulnerabilidade para essas pessoas.
"As mulheres com deficiência enfrentam dupla vulnerabilidade que amplificam seus riscos de violência, já que sofrem tanto com o machismo quanto com o capacitismo, duas formas de opressão que se sobrepõem", disse Patrícia, em entrevista ao Terra NÓS.
A dificuldade de reagir, seja pelos impedimentos da própria deficiência, seja pela falta de acessibilidade, até nas próprias delegacias para fazer o registro da violência, é particularmente perigosa, pois isso dá à pessoa abusadora a ideia de que essas mulheres são 'mais fáceis de oprimir, abusar e manipular' ou de que têm menos chances conseguir denunciar a violência.
Dados
A violência doméstica contra pessoas com deficiência liderou o número de notificações em 2022, totalizando 8.302 registros, seguida pela violência comunitária (3.481 registros) tipo misto (2.359 casos) e violência institucional (458 casos). O registro de notificações de mulheres com deficiência vítimas de violência doméstica chegou a ser 2,6 vezes maior em relação aos homens.
O Atlas da Violência 2024 constatou que a violência física é a mais comum contra pessoas com deficiência, correspondendo a 55,3% dos casos. Em seguida, vem a violência psicológica (31,7% das notificações), e a violência sexual (23%). As pessoas mais afetadas por esses tipos de violência estão na faixa etária de 10 a 19 anos, com 21,3% dos registros, e de 20 a 29 anos (15,8%).
A violência sexual foi mais registrada entre as mulheres, especialmente na faixa etária de 10 a 19 anos. O número de notificações de violência de natureza sexual chegou a ser quase sete vezes maior para mulheres (3.064 notificações) do que para homens (442 notificações).
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) de 2022, cerca de 18,6 milhões de pessoas no Brasil, com dois anos ou mais de idade, têm algum tipo de deficiência, representando 8,9% da população.
A violência
"A disparidade no número de mulheres e homens com deficiência abusados sexualmente revela a clara relação de gênero e abuso sexual que já conhecemos. As mulheres são vistas como alvos mais 'fáceis', e o corpo da mulher, em geral, é objetificado", afirma Patrícia.
A psicóloga Priscila Siqueira, uma mulher bissexual com nanismo e fundadora do Vale PCD, organização não governamental que tem como objetivo melhorar as condições de vida das pessoas LGBTQIA+ com deficiência, teve os seus direitos violados em diversos momentos da vida. Quando tinha cerca de 8 anos, foi trancada por um primo mais velho em seu quarto enquanto estavam sozinhos em casa. No cômodo, ele a beijou e a tocou, e ainda ameaçou bater nela com um ferro de passar roupa.
"Foi assustador porque eu era uma criança e não sabia o que fazer. Eu não sabia nem que isso era uma violência, para começar", disse ela em entrevista ao Terra NÓS.
Já na maioridade, sofreu novamente outra violência durante um encontro com um homem que havia conhecido em um aplicativo de namoro. Quando estavam em um bar, ela se sentiu desconfortável com os toques dele e sugeriu que fossem para uma balada, pensando que isso o impediria de continuar tentando formas de contato que a deixava incomodada.
No local que ela já frequentava, tinha uma pista fechada, para onde o rapaz a levou e a colocou em seu colo e a violentou. Em seguida, ele a deixou sozinha no espaço e nunca mais se falaram.
Priscila não soube o que fazer e nem quem procurar. "A falta de instrução, a falta de educação sexual para pessoas com deficiência, coloca a gente em situações como essa. Acho que foi por isso que eu demorei tanto para conseguir falar sobre isso. Por isso que eu não denunciei", conta Priscila Siqueira.
Nós sabemos da dificuldade de ter uma proteção efetiva, mas é muito importante que a gente denuncie [violências sofridas] porque só assim conseguimos que a lei seja cumprida, que pessoas com deficiência sejam realmente protegidas e percebidas. Quanto mais a gente se cala, mais a gente perpetua violências e mais a gente se coloca em risco também.
Mudanças
Segundo Priscila, essa situação precisa mudar para que mulheres com deficiência se sintam mais seguras e amparadas. "Que as pessoas percebam os canais de denúncia como canais que precisam ser acessíveis. E precisamos estar mais incluídas nos debates sobre violência contra a mulher", afirma.
Para a especialista Patrícia Lorete, a sociedade e o Estado devem atuar de forma conjunta em diversas frentes para garantir melhor proteção e acolhimento às mulheres com deficiência vítimas de violência.
"Fortalecer políticas públicas de combate à violência, com foco no recorte da deficiência, é um exemplo. Só para termos uma ideia, apesar da Lei Maria da Penha, de 2006, que surgiu após uma mulher vitimada adquirir deficiência, as delegacias só passaram a considerar a deficiência como agravante no Boletim de Ocorrência em 2019, 13 anos depois", destaca.
Uma outra medida seria aprimorar o treinamento de profissionais da saúde. "Incentivar a sociedade a identificar e denunciar abusos contra mulheres com deficiência também é fundamental. O corpo com deficiência deve sair da invisibilidade e protagonizar campanhas de prevenção e enfrentamento à violência. Nas campanhas midiáticas a mulher com deficiência nunca aparece, mas é uma das maiores vítimas."